segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Urgeiriça: «O Estado sabia que o minério matava e deixou-nos aqui para morrer»





























O ano era 1986 e da Ucrânia chegavam notícias de uma tragédia sem precedentes. Um reator nuclear tinha explodido em Chernobyl e, à medida que a taxa de contaminação de cancro disparava no Leste da Europa, a Euratom – Comunidade Europeia da Energia Atómica – apertava as medidas de segurança sobre a exposição à radioatividade.

Portugal tinha aderido nesse ano à CEE e estava obrigado a cumprir as diretivas. Mas nas minas da Urgeiriça, em Canas de Senhorim, o urânio continuava a ser extraído a seco, manuseado sem luvas nem máscaras adequadas, carregado em camiões sem qualquer proteção especial.

Os fatos de trabalho dos mineiros, dos trabalhadores do departamento químico e dos embaladores de minério eram levados para casa para lavar com o resto da roupa – nas mais das vezes à mão, em tanques comunitários.

«Víamos morrer homens com 40, 50 anos, uns atrás dos outros», diz António Minhoto, presidente da Associação dos ex-Trabalhadores das Minas de Urânio (ATMU). «E às tantas a mortandade era tão grande que perguntávamos se o Estado não estaria a negligenciar a segurança de nós todos.»

Foram 170 mortes desde essa altura, segundo as contas da ATMU. «As anteriores a 1986 não podemos contabilizar porque não conseguimos provar que a Empresa Nacional de Urânio (ENU) tivesse consciência de que estava a submeter os funcionários a riscos desnecessários.»

A entrada do país na Comunidade Europeia e consequentemente na Euratom não lhes deixa margens para dúvidas: «Foram dadas indicações ao Estado e o Estado pura e simplesmente ignorou.» Em 1986 havia 350 trabalhadores na Urgeiriça. Metade morreu entretanto de cancro.

Sempre que em Canas de Senhorim corre a notícia da morte de mais um mineiro, Natércia Cancela diz a quem a quiser ouvir: «Desgraçada desta mina que só sabe roubar-nos homens.» Tem 65 anos, é viúva há 23. Um cancro fulminante no pulmão matou-lhe o marido em 1994, quando este tinha 41 anos.

José Cancela trabalhava desde os 16 anos no poço de Santa Bárbara, o maior depósito de urânio da Urgeiriça. «Operava as máquinas de perfuração, que soltavam aquela poeira toda que hoje sabemos ser radioativa. Mas nunca usava máscara ou luvas. A única coisa obrigatória era o fato-de-macaco, que ele trazia para casa para lavar e me punha a água toda preta assim que o deitava à bacia.»

Nem ela nem o marido alguma vez desconfiaram de que a proximidade do minério pusesse vidas em perigo. «Toda a gente achava que a mina era trabalho bom. Recebia-se um bocadinho melhor e era emprego fixo por muitos anos.» A radioatividade não era assunto.

Só muitos anos mais tarde, já depois do encerramento da mina, é que ela começou a encaixar as peças todas. «Se não se tivesse criado a ATMU para levantar a voz, continuaríamos na mesma ignorância até hoje. O Estado conhecia os perigos e nada fez para proteger estes homens. Sabia que o minério matava e deixou-nos para aqui a morrer. E, pior do que isso, tentou sempre esquivar-se às suas responsabilidades.»

Não será bem assim. Em 2015, o atual governo estabeleceu um plano para compensar as famílias dos antigos trabalhadores das minas de urânio que morreram com neoplasias malignas. Os que perderam um familiar com menos de 45 anos estão a receber cinquenta mil euros, aos que tinham entre 45 e 55 anos cabem quarenta mil e, aos maiores de 55, trinta mil euros. «Depois de 15 anos de luta, conquistámos uma parte do que queríamos, mas não tudo», diz António Minhoto. «E foi um processo verdadeiramente trabalhoso.»

Minhoto diz que o Estado nunca admitiu verdadeiramente qualquer culpa. «É por isso que foi definido um plano de compensações e não de indemnizações. Pensámos seriamente em não aceitar esse plano, mas, depois de década e meia de luta, esta era a primeira vez que as nossas exigências eram atendidas.» Em 2016, aliás, os antigos mineiros do urânio foram homenageados na Assembleia da República. «Soube um pouco ao pedido de desculpas que Portugal nunca nos fez. Não era, mas era.»

Para trás estão anos de reivindicações que os sucessivos governos recusaram. «Tivemos de organizar conferências, contratar especialistas, tudo para provar a relação entre o urânio e as mortes. Portugal não queria assumir responsabilidades, nem sequer queria investigar essas responsabilidades», atira.

Acabaria por ser o Instituto de Saúde Dr. Ricardo Jorge a dar-lhes o suporte de que precisavam para estabelecer a responsabilidade do Estado. Num relatório de 2002 sobre mortalidade por cancro nos concelhos do país, Nelas apresentava o dobro dos valores dos restantes municípios.


«Este excesso de mortalidade poderá estar associado à existência da mina da Urgeiriça e da sua escombreira», dizia nesses dias ao Público um dos investigadores, José Marinho Falcão. «Embora não seja possível excluir a existência de outras causas, tudo indica que o problema possa estar aí.»

A partir daí a ATMU ganhou outra força. Apesar de o relatório não garantir certezas absolutas, os sinais da contaminação eram evidentes. «A tal mortalidade excessiva verifica-se não só nos homens mas também nas mulheres», apontava o mesmo investigador. «E isso sugere a possibilidade de exposição ambiental geral, não apenas a quem trabalhava na mina». E é este precisamente o ponto por que a associação agora batalha.

«Estamos preocupados com o crescimento de casos de tiroidismo – não nos mineiros, mas nas segundas e terceiras gerações. E vemos também um número anormal de familiares de mineiros que desenvolvem cancros na traqueia, nos pulmões e no estômago, apesar de nunca terem descido ao poço», diz António Minhoto.

A contaminação, dizem, não se circunscreve aos trabalhadores do urânio. Depois do relatório do Instituto Ricardo Jorge, o governo aceitou criar em 2007 um posto médico para fazer rastreio oncológico aos antigos trabalhadores das minas. Mas só alargou o acompanhamento aos familiares em 2010 e, para muita gente, isso foi tarde de mais.

É precisamente o caso de Emília Costa, 80 anos, que vem a descer a rua no Bairro Novo dos mineiros, agarrada a um andarilho porque mal consegue andar. Ao seu lado, uma gata que parece cadela – chama-se Princesa, acompanha-a por todo o lado. O marido era empacotador na mina, trabalhava no departamento químico.

«Viemos de Lisboa para Canas quando casámos, foi aqui que lhe apareceu trabalho e foi onde construímos uma vida melhor.» Chegaram nos anos 1950, e ele nunca descansou até 2000. «Chegava-me todos os dias a casa coberto de pó de urânio, e eu é que lhe tratava da roupa. Nunca lhe vi uma máscara, umas luvas. Morreu em 2001, tinha 66 anos, e a falta que ele me faz.»

Uma década depois, quando foi chamada às consultas no posto médico, a mulher recebeu a pior das surpresas: tinha cancro e metástases espalhadas por todo o aparelho digestivo. «Andei a fazer quimioterapia e lá tenho conseguido fintar a morte. Mas agora anda a minha filha em exames, e eu só rezo a Deus para que as notícias sejam boas. Que Ele me leve a mim em vez dela.»

Não tem dúvidas de que o mal familiar vem da mina. Pois se bebiam água do poço, pois se tomavam elas conta da roupa do seu homem. «Às vezes penso que devíamos ter ficado em Lisboa, que o meu marido nunca devia ter vindo estragar o corpo para a mina de urânio. Mas como é que podíamos saber? Mesmo os que sabiam nunca nos disseram nada. Estou velha, não me zango com a morte, mas zango-me com os que sabiam que estávamos a morrer aos bocadinhos e nem uma palavra disseram. Se falassem mais cedo, quantas vidas se teriam salvado?»

Oceano Pereira, 67 anos, trabalhou, tal como o marido de Emília, durante três décadas na unidade de tratamento químico da Urgeiriça. Era tratador químico, perdeu a conta às vezes que inalou os gases do ácido sulfúrico com que era feito o composto e as poeiras radioativas que saíam das máquinas de moagem. «Eu era sindicalista e comecei a ler uns livros sobre radioatividade. E foi nos anos 1980 que comecei a perceber que o nosso manual de segurança era obsoleto.»

Por causa dos seus esforços, alguns trabalhadores passaram a usar medidores de contaminação e, muitos anos mais tarde, luvas e máscaras. «Mas isso não servia de grande coisa, porque a poeira era transportada a céu aberto e as partículas espalhavam-se por toda a parte. As águas da lavagem eram descarregadas em barragens e infiltravam-se livremente nos solos. Era a mais pura das irresponsabilidades.»

Oceano escapou ileso à mina, mas ainda hoje se pergunta se a morte da mãe e da mulher por cancro não estarão relacionadas com o urânio. «Nenhuma delas trabalhou na Urgeiriça, mas ambas contactavam com os materiais contaminados que eu levava para casa.» Além disso, nos primeiros anos em que se mudaram para ali não havia rede pública de águas, bebia-se o que vinha do poço – e hoje sabem que os solos estavam carregados de resíduos perigosos. «A radioatividade não se vê, não se cheira nem se sente. Mas esteve sempre aqui, a matar-nos devagarinho.»

A grua do poço de Santa Bárbara – oitocentos metros terra adentro – ainda ali está, rodeada de casas restauradas e que hoje servem para fazer festas e almoços de convívio. Antes eram oficinas e serralharias, armazéns onde se guardava a pedra, moinhos onde era transformada em pó.

«Eu trabalhava ali, nos laboratórios de química.» Carlos Borges, 67 anos, aponta o dedo para uma grande casa lá ao fundo, que não se pode visitar porque a Empresa de Desenvolvimento Mineiro (EDM) está agora a fazer ali obras de isolamento. Ao lado, cercados por arame farpado e vigiados por seguranças privados, jazem ainda 150 toneladas de composto de urânio, um produto altamente radioativo que ainda não tem destino assegurado.

Das 12 pessoas que trabalharam com Borges no laboratório de química, metade perdeu a vida para o cancro. «Havia uma mulher a quem só aos oito meses de gravidez lhe entregaram um avental para se proteger dos químicos. Havia mineiros que levavam pedras de urânio para casa sem nunca pensarem que estavam ativas. Houve primos que eu trouxe para trabalharem aqui sem nunca me passar pela cabeça que os estava a trazer para a morte.»

Emociona-se, numa confusão de sentimentos. «Isto foi a minha vida, sabe? Foi aqui que me fiz homem. Não dá para explicar o que uma pessoa sente quando percebe que um lugar que se amou a vida toda afinal está amaldiçoado.»

Numa coisa toda a gente concorda: a Urgeiriça não era só uma mina, era uma aldeia e era um orgulho. Quase toda esta gente estudava na escola primária do complexo mineiro, fazia compras na mercearia que ali vendia tudo, convivia na Casa dos Trabalhadores, namorava, casava, tinha filhos ali. Em 1954 foi até construído o Bairro dos Mineiros, com casas pequenas mas confortáveis, que nos anos 1980 teria uma segunda fase de apartamentos modernos. Helena Albadia mora até hoje numa vivenda antiga, uma das oitenta que precisam de intervenção.

É que os primeiros edifícios foram construídos com material da mina. Barrotes de madeira cheios de minério, pedras de fundação com urânio ativo, algumas manchadas pelo composto, que tem o dobro da radioatividade. «Andaram aqui a medir os níveis de perigo com uns aparelhos e agora dizem-me que a casa não está boa.» E isso é um drama para a mulher, porque foi ali que ergueu o monumento às suas memórias, e foi ali que lutou pela vida.

«O meu marido morreu com 38 anos, teve um cancro que o matou de um sopro. E eu fiquei aos 39 com nenhum trabalho e dois filhos nos braços. Como sou do Porto, nunca tive família que me ajudasse.» As crianças começaram a trabalhar na adolescência, ela somava turnos nas limpezas – mas conseguiu criar a prole, e fê-lo naquela casa. A EDM promete recuperar as casas e ela já não sabe o que sentir: se medo se amor às suas paredes. «Se ao menos ainda aqui tivesse o meu marido para me ajudar a decidir», choraminga, e depois revolta-se: «Danada desta mina que me roubou a felicidade toda.»

URÂNIO EM PORTUGAL:
HISTÓRIA DE UM NEGÓCIO DANOSO

Em 1907 foram descobertos jazigos de urânio na região da Guarda. Seis anos depois abriram as minas da Urgeiriça, em Canas de Senhorim (Nelas). Até 1944 o urânio não tinha valor comercial e explorava-se sobretudo o rádio, mas a partir de 1951, com a Guerra Fria e a corrida ao armamento nuclear, começou a produção de concentrados de óxido de urânio e a indústria ganhou novo fôlego.

No auge da produção, nos anos 1960, havia 61 minas nos distritos de Viseu, Guarda, Castelo Branco e Portalegre. Mas todo o tratamento e transformação eram feitos ali, na Urgeiriça. Todas as outras minas fecharam em 2000, depois de a queda do Muro de Berlim pôr termo à necessidade de urânio. A Urgeiriça foi a última a encerrar, em 2004.

A exploração de urânio em Portugal esteve sempre entregue a um único proprietário. Primeiro foi um grupo francês liderado pelo banqueiro Henrique Burnay, que daí a uns anos fundaria o Banco Fonsecas & Burnay. Em 1929 foi constituída a Companhia Portuguesa de Radium, de capitais ingleses, que converte duas depois a exploração de rádio em urânio.

A má gestão inglesa leva Salazar a apropriar-se da empresa e a criar a Junta de Energia Nuclear, que depois do 25 de Abril muda de nome para Empresa Nacional de Urânio. A cada mudança, uma quebra brutal no número de trabalhadores: nos anos 1950 chegavam aos 1500, no final da década de 1980 já eram pouco mais de 350. A empresa começa a avançar com um processo de despedimento na década seguinte, até à extinção definitiva há 13 anos.

Cinquenta milhões de euros é quanto o Estado já pagou à Empresa de Desenvolvimento Mineiro para resguardar ambientalmente as regiões onde estavam as minas de urânio portuguesas.


Os lugares mais perigosos – que tinham escombreiras, depósitos e barragens – estão tratados, mas falta a descontaminação de vinte poços. O Laboratório Nacional de Proteção Radiológica admite que ainda são feitas descargas de água contaminada na bacia do Mondego, mas que os níveis de radioatividade não representam perigo para a vida humana.



Texto Ricardo J. Rodrigues

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Do turismo negro ao turismo cemiterial



























O ISCET, no Porto, vai promover nos dias 18 e 19 de novembro o curso "Do turismo negro ao turismo cemiterial". Trata-se de uma formação inédita em Portugal, que terá uma parte prática no Cemitério da Lapa.

domingo, 5 de novembro de 2017

A tempestade perfeita na Galiza





































A1 de outubro, os postos de vigia das florestas fecharam em Portugal. E, na Galiza, a época de incêndios também terminou. Por isso, mil bombeiros florestais, encarregues da prevenção, foram mandados para casa. Dias depois, manifestaram-se em Santiago de Compostela, numa altura em que os serviços de meteorologia avisavam que o tempo quente e seco estava para ficar. Exigiam que os postos de trabalho fossem prolongados e a Xunta da Galiza cedeu ao protesto: prometeu que voltariam ao terreno, mas só a partir de 17 de outubro.
Quarenta e oito horas antes de o “reforço” voltar aos montes, o Norte de Espanha era varrido por um exército de lume. A 15 e 16 de outubro, com o Centro e o Norte de Portugal submersos numa gigantesca nuvem de fumo, 269 incêndios varreram a Galiza, causando quatro mortos, destruindo uma dezena de habitações e queimando 49 mil hectares em tempo recorde. Na freguesia de Chandebrito, aldeia com pouco mais de 500 habitantes que pertence a Nigrán, nos arredores de Vigo, só sobraram dois hectares de floresta. Houve quem perdesse tudo e Angelina Otero e Maximina Iglesias, 78 e 86 anos, morreram queimadas dentro de uma carrinha, a 500 metros do povo, quando tentavam fugir, escoltadas pela polícia. Despistaram-se numa estrada de montanha ladeada por eucaliptos e que ganhou o nome de “carretera de la muerte” [estrada da morte].
Nesse domingo, deu-se a tempestade perfeita. Miguel Ucles, o presidente da Plataforma de Bombeiros Públicos da Galiza, recorda como a região era um barril de pólvora: “O vento soprava a mais de 40 kms/hora, a humidade era inferior a 20% e a temperatura estava acima dos 30 graus”. A estas condições, ideais para a propagação de incêndios, juntaram-se, segundo o bombeiro, a “desmobilização de meios” e “o ignorar, por parte das autoridades, dos avisos meteorológicos”.
Rosa Mosquera, professora da Escuela Politecnica de Santiago de Compostela e que integra um painél criado pelo governo espanhol para estudar as alterações climáticas, acrescenta à lista outros ingredientes fatais. Portugal e a Galiza têm primaveras húmidas, que “favorecem a acumulação” de combustíveis nas florestas, votadas ao abandono e “sem limpeza adequada” desde a década de 1980. Na Galiza como em Portugal, o fogo é a vingança dos montes sós.

Sem comando nem comunicações
Como Pedrógão Grande, a aldeia de Chandebrito foi “apanhada” por um fenómeno raro: a junção de dois incêndios. Um fogo desceu pelo Monte do Castro; o outro veio de repente pelo Monte Gallinero. Bastaram três quartos de hora para que só as casas – e nem todas – escapassem à fúria das chamas. Ficou noite, voaram bolas de fogo pelo ar, a água esgotou e só havia dois bombeiros no povo. O cenário multiplicou-se por toda a Galiza e, nos dias seguintes soube-se, aos bochechos, que quase tudo falhou no socorro.
“A polícia e os bombeiros pareciam muito nervosos”, descreve Víctor Otero, da Asociación de Veciños de Chandebrito – a associação comunitária que gere os terrenos e montes da freguesia. A percepção é confirmada por Miguel Ucles, que andou no terreno e que recorda que no dia 15 foi ativado o nível 2 de emergência, mas só no papel. “Não chegou a ser montado qualquer posto de comando para coordenar as operações”, descreve. Assim, cada corporação – na Galiza há cerca de dois mil bombeiros, entre públicos e privados – andou “às cegas” e “por sua conta”.
E as comunicações também não aguentaram. Em Espanha não há SIRESP, bombeiros e “civis” usam linhas telefónicas comuns para comunicar. Mas, nesse dia, só havia quatro operadores no 112 da Galiza para atenderem uma avalanche de telefonemas, apesar de o call-center ter capacidade para 40 pessoas trabalharem em simultâneo. “O meio que melhor funcionou e nos permitiu organizar foi o whatsapp [aplicação de telemóvel para trocar mensagens via internet]”, conta Miguel Ucles.  A decoordenação foi de tal ordem que, por volta das 20:00 horas de domingo, a cidade Vigo estava rodeada de chamas e o plano de emergência não foi ativado. “Na realidade, nunca saiu do papel desde que foi criado, em 2014”, denuncia o bombeiro.

Ajudas  prometidas ainda não chegaram
Na Galiza como em Portugal, as ajudas e as soluções avançam devagar. Ontem, o jornal “La voz de Galicia” avisava que o Monte do Castro, junto a Chandebrito, está em risco de derrocada por causa das chuvas que entretanto chegaram. A Xunta terá sido alertada para a ameaça há mais de uma semana, mas ainda nada foi feito. Víctor Otero conta que, nos dias a seguir ao fogo, se espalhou palha seca pelos montes, para evitar a erosão dos solos. Mas a ideia rapidamente foi abandonada: “Percebeu-se que ajudava à propagação dos reacendimentos”.
Quase um mês depois, as famílias das vítimas ainda não foram indemnizadas.
Rafael Iglesias enterrou a mulher, Maximina, na quinta-feira a seguir ao incêndio. No cemitério de Chandebrito, os campos ainda fumegar, recebeu as condolências de responsáveis da Xunta da Galiza e do Ayuntamiento de Nigrán. Anunciaram-lhe que ia receber 75 mil euros. “Nunca mais disseram nada desde então”, conta. E Benigno Iglesias, sobrinho e herdeiro de Angelina, também não voltou a ser contactado.  Os dois culpam a Policia Nacional – que deu as ordens para que as aldeias fossem evacuadas – pelas mortes. “Obrigaram as pessoas a sair, sem rumo, e orientaram os carros para a estrada, que estava em chamas”, garante Rafael.
Víctor Otero,  da Asociación de Veciños, confirma que houve “uma certa obsessão da polícia em evacuar a todo o custo”. E Angel Martinez, que vive em Pracíns, uma anexa de Chandebrito onde arderam duas casas, recorda que quando seguiu as instruções da polícia, saiu de carro, sem rumo, “tomando a direção que parecia não ter tanto lume”. Houve quem resistisse e se tenha recusado a sair, como Leopoldo Prado, que se escondeu em casa. Esperou que todos os vizinhos e a polícia saíssem em cortejo e, com as chamas a rondar a casa, apagou o que pôde com uma mangueira. Salvou a vivenda, mas não evitou a que a vinha ardesse. Por essa altura, e na zona mais baixa de Pracíns, a casa de Victoria Figueiroa e Noémi Fialho, derretia por dentro. Literalmente: a vivenda não ardeu por fora, mas queimou por dentro. Mãe e filha vivem agora na casa de uma família de acolhimento e esperam a visita de peritos para a avaliação dos estragos. “Sem pressa. Na Galiza há um ditado que diz ‘cosas de Palacio van despacio’ e que significa que as burocracias levam tempo”, queixa-se Victoria.

O azar de mãe e filha foi viverem numa das primeiras casas da povoação, rente à floresta. O vizinho Angel, que há 20 anos deixou Vigo para viver na aldeia, está convencido de que os incêndios são uma espécie de vingança dos montes, votados ao abandono. “A floresta que nos atraiu transformou-se no veneno que nos vai matar”.


Texto: Rosa Ramos