quarta-feira, 27 de abril de 2016

A ilha dos penitentes
































































No início era uma promessa para que a ilha de São Miguel, nos Açores, fosse poupada à fúria da natureza. Se a origem da prática, como hoje subsiste, está na “subversão de Vila Franca do Campo”, em 1522, ou no terrível ano da cinza (1630), é algo que talvez jamais possa ser clarificado, como nota a investigadora Carmen Ponte, num artigo de fundo sobre os romeiros de São Miguel (ou as romarias quaresmais) que pode ser lido no N.o 2 da revista “Jornal de Notícias História”, disponível na bancas de todo o país. Certo é que grupos de homens – os ranchos - mantêm viva esta prática, como se o sacrifício de percorrer a ilha a pé, ao longo de 300 quilómetros, com a cevadeira às costas, terço na mão, a rezar pelos seus e por em quem neles confia a sua oração, possa adormecer os vulcões. A fé destes homens e o seu poder de oração é inimaginável. Os romeiros não são santos, mas garantem que a romaria entre “irmãos” faz deles melhores homens. Estes são os de Ponta Garça.

Centenas de homens cumprem ritual de fé
Ar angelical, cabelo loiro, olhos claros e sorriso maroto escondem ora as brincadeiras de criança, que faz a toda a hora nos intervalos das orações, ora a pose de adulto, que encarna quando se veste de romeiro e segura a cruz.
Patrício tem apenas 13 anos e a grande responsabilidade (que não cabe em metro e meio de altura) de conduzir um punhado de 54 homens, que seguem alinhados, a rezar. Quando era miúdo ficava fascinado a ver passar os romeiros.
Quando pediu, pela primeira vez, para ir na romaria, o Mestre do rancho de Ponta Garça, João Carlos Leite, não o levou a sério. Voltou a insistir e conseguiu convencê-lo no ano seguinte. Tinha apenas sete anos. Quando lhe perguntamos se vai ser romeiro até ser velhinho, não hesita: “Vou ser romeiro até morrer”!
Patrício é o petiz do rancho de Ponta Garça, um dos cerca de 50 que todos os anos percorrem a ilha de São Miguel, num ritual de fé sem paralelo. Durante uma semana, estes homens são “irmãos”. E, entre “irmãos” - alguns são irmãos de sangue e em alguns ranchos seguem três gerações da mesma família – não há diferenças. Não há pobres nem ricos. Não há doutores,
engenheiros, médicos ou agricultores. Há apenas “irmãos”. Há apenas homens de fé.
São centenas de homens que, todos os anos, nas semanas da Quaresma, cumprem esta tradição secular, numa jornada de sacrifício e de muita fé, em que o corpo é levado ao limite da resistência.
Caminham, organizados, em duas alas paralelas, e entram em todas as igrejas e ermidas da ilha de São Miguel, onde haja imagens da Virgem Maria (antigamenta, chamava-se à romaria “visita às casinhas de Nossa Senhora”) cantando e rezando. Fazem o percurso no sentido dos ponteiros do relógio, tendo sempre o mar à esquerda deles, sujeitos ao frio, à chuva, ao sol intenso, ao vento, com apenas um xaile aos ombros, lenço ao pescoço, terço na mão e um bordão para ajudar na caminhada.
A partilha, o convívio e as experiências entre “irmãos” é transversal a todos os ranchos de romeiros, explica João Carlos Leite, coordenador de todos os ranchos da ilha como responsável do Movimento de Romeiros de São Miguel e romeiro há 30 anos. É na romaria que “ficam despertos para mudar alguma coisa na sua vida”, conta.

Toda uma ilha em romaria
A fé que a comunidade micaelense deposita nos romeiros é difícil de medir. Os fiéis sabem o poder da oração dos “irmãos”, que “rezam mais e melhor” e, por isso, os pedidos atropelam-se no caminho.
O padre João Neves é o elo de ligação nesta rede de oração, entre os “irmãos” e a comunidade. Como Procurador das Almas do rancho vai recolhendo as orações pedidas nas localidades por onde passam, nos terços que carrega ao pescoço vai marcando as orações pedidas com um alfinete e, assim, garante que nenhuma prece fica por atender.
A rede de oração é tão poderosa que as orações multiplicam-se. Por cada Avé-Maria rezada pelo rancho, quem a pediu tem de rezar uma Avé-Maria por cada um dos “irmãos” do rancho, ou seja, 54. Assim funciona a rede de oração.
“O trabalho do romeiro é rezar. Somos instrumentos, somos quase uma ponte entre as pessoas que nos pedem oração e Deus. Estamos aqui para ajudar as pessoas nas suas aflições, em situações de ações de graças e somos aqui como uma ponte, as pessoas confiam em nós, confiam na nossa oração e pedem-nos ajuda", conta Jorge Sousa, que leva 19 romarias nos pés e uma missão que está prestes a abraçar: seguir a vocação e ser padre.
A romaria sente-se, vive-se em cada um, apodera-se de todos, apodera-se toda a ilha, numa rede de oração, de entreajuda e partilha que não conhece limites. Do padre que celebra a missa às 04h00, quando a aldeia toda ainda dorme; dos que madrugam para garantir o pequeno-almoço dos romeiros; dos que oferecem refeições aos romeiros porque assim prometeram; das famílias que
“arrumam” os romeiros” (expressão usada para acolher pos “irmãos”).
Leonor fala de coração apertado enquanto prepara o saco do marido e dos dois filhos que dentro de poucos dias partem para mais uma romaria. Filha de um antigo Mestre, está habituada a esta azáfama das semanas que antecem a Páscoa, porque a sua casa é a casa de muitos romeiros que por lá pernoitam. Assim acontece um pouco por toda a ilha. As portas abrem-se para “arrumar” romeiros. Para lhes oferecer uma refeição e banho quentes. A romaria é isto mesmo, é uma rede de solidariedade e de oração, que torna o caminho dos romeiros menos penoso.

300 km para “encher o balão de ar quente”
Quatro horas da manhã. A cidade ainda dorme e já se ouvem os passos, os cânticos e as rezas dos romeiros. A caminhada começa cedo e só termina quando o sol se põe. À medida que os dias passam, a mochila é cada vez mais pesada, os pés vão-se arrastando no asfalto, as
“bexigas” (bolhas nos pés) vão-se acumulando e as poucas horas de sono dificultam a caminhada. Quando as forças parecem faltar, há sempre um “milagre” que acontece no rancho. Afinal, “o romeiro é a capacidade de superação diária”, conta o mestre do rancho, sabendo, ainda assim, que no final da romaria não contará os 54 “irmãos” porque alguns não vão chegar ao fim.

Que fé é esta que junta centenas de homens, em tamanho ato de sacrifício e devoção? É a fé em Deus, mas é, acima de tudo, a fé dos homens. A vontade de chegar ao fim, com a força dos “irmãos” que estendem a mão quando as pernas começam a falhar.
João Gabriel é do tempo em que até os padres não gostavam da romaria e fechavam as portas das igrejas. “Hoje, até bispos vão”, conta este “irmão” com 50 romarias nos pés, em 66 anos de vida. Vem do tempo em que “as comidas eram piores”, em que levavam pão para a semana toda e que não tomavam duche nessa semana. Hoje, a romaria é “mais fácil”, dentro da facilidade de caminhar 300 quilómetros, com uma mochila carregada às costas, ao sol, ao vento, ao frio e à chuva.
Daniel Arruda garante que nada falta aos romeiros. Leva 40 anos de romaria (quando começou tinha apenas 13 anos) e é o despenseiro do rancho, encarregue das encomendas de tabaco, medicamentos, pão ou outros alimentos que faltam na marmita que os “irmãos” levam consigo e que sai carregada de casa para a semana inteira.
Os “irmãos” chegam de várias partes da ilha, de outras ilhas, do continente, de outros países. João Maria voltou do Canadá, onde vive há mais de duas décadas, de propósito para a romaria. O bordão de caminhada herdou-o do trisavô. O bichinho foi passando de geração em geração e só nesta romaria conta sete elementos do clã Sousa. Uma vez, recorda João Maria, prometeu fazer a romaria com o pai. A lei da vida e da morte impediu o cumprimento dessa promessa.

Texto por: Ana Oliveira