sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

O bebé deitado fora e como ele se salvou


























João e Rui, sem-abrigo, reconstituíram o salvamento do recém-nascido abandonado num ecoponto.

Quando João viu aquilo retraiu imediatamente a cabeça para fora da moldura amarela do ecoponto. Tinha os olhos muito abertos. Vira uma coisa que não era suposto estar ali, que não parecia verdadeira, uma coisa irreal, uma coisa que parecia errada, ou pior, e quando olhou a segunda vez já foi à cautela, de tronco inclinado para trás.
Varejou o olhar lá para dentro a ver o que podia ver, esquadrinhou, viu o bafo da própria respiração e não viu nada daquilo que imaginava ver. Ficou ali ainda uns segundos, confuso, a hesitar, sem saber o que fazer. Como aquilo não lhe passava, uma estranheza, inquietação, contradição, uma sensação de fogo a deslizar no gelo, a subir-lhe ao peito, pôs-se subitamente a correr, alucinado como o Bolton, e foi chamar o Rui.
Eram 9.30 da manhã. O Rui estava ainda no quiosque abandonado por trás da discoteca lisboeta Lux, na calçada onde se esticavam as cinco tendas verde-musgo, a sua, a do João, a do Sidnei e da Sara, que dormiam, a do Bangla e a do Xavier, que já não estavam, Rui arrumava cenas e trincava uma maçã. "Ele chegou esbaforido, todo desorientado, vinha do outro lado da rua, é estranho, parecia que chorava sem chorar, todo a tremer. Ó pá, ó Rui, eu vi um bebé, pá!, anda comigo lá, é um bebé, pá!, estou a alucinar", disse o Rui que disse o João sem perceber patavina do que ele estava a dizer. "Mas viste o quê?, e viste aonde?, perguntei eu que já me estava a passar. Estás-me a assustar, João, viste o quê? E fomos os dois, ele nervoso, eu ansioso, e fomos a abrir".
Percorreram os 400 metros da calçada marginal à Avenida Infante D. Henrique, entre a linha dos comboios da CP, o terminal de cruzeiros do Tejo, as gruas grandes, os vagões e os contentores da EMEF, do outro lado da Estação de Santa Apolónia, vão acelerados, vão a ventar, e chegam os dois ao grande caixote do ecoponto a arfar. "O caixote estava cheio de tampas de garrafas e plásticos, eu espreitei, enfiei a cabeça, olhei, tornei a olhar, nada. Mas que bebé?", diz o Rui a olhar semicerrado para o João, "não está aqui nada!". Vasculharam outros caixotes, viram os contentores de metal, reviram, nada. "Eu fiquei a duvidar do João", diz o Rui, "ele tem psicoses, mete metadona, desorienta-se, ele sabe (João concorda silencioso), ele estava com uma onda marada, pá, a anhar". Mas o João jurava e repetia baixinho: "Eu vi. Era um bebé...". E saem os dois desalentados dali.
Pelo caminho encontram o Vítor que vinha lá do fundo onde dormia, nas tendas onde dormem 11 pessoas debaixo do viaduto, contam-lhe tudo e o Vítor só diz: "É pá, se é um bebé é porque está morto. Afastem-se. É melhor".
Mas aquilo continuava a comer-lhes as cabeças e os dois decidem o contrário, vão à polícia turística da estação. Entram de rompante, atropelam as palavras, esbracejam, mas os polícias, que eram dois, não acreditam neles, gracejam, troçam deles, dizem que têm é que se internar. "E saímos os dois chateados dali", diz o Rui. "Contamos os trocos, eu comprei sangria, voltei para a tenda e o João, ó João tu és mas é maluco, foi à vida dele para o lado da estação".
João arrumou uns carros e uns trocos, cirandou no átrio de Santa Apolónia que já se enchia de fumo azul das castanhas lá fora a assar, encontrou Arlindo, o pregador - há uns tempos o Arlindo estava atolado nas trevas em Espanha, viu uma luz a rasgar e retornou a Portugal, "foi uma coisa a descer sobre mim, foi como um êxtase", e agora anda sempre a pregar, pede moedas, dá a palavra, diz que "temos todos ainda salvação" -, almoçaram um frango comido à mão, beberam vinho de pacote e continuaram a arrumar.

João chora: "É um bebé!"

Mas aquilo não saía da cabeça do João. "Nem da cabeça, nem do coração. Era um peso aqui no peito, atrás dos olhos, não sei bem dizer, uma coisa que se meteu em mim, que não me deixava pensar, mas, raios, eu vi ou não vi um bebé?!".
Vai passar uma meia dúzia de horas de roldão até que João torne ao ecoponto. Foi às 4.30 da tarde. "Tinha que saber, dava em maluco, vi ou não vi o que vi?". João vai, chega, deita as mãos ao bojo do ecoponto, espreita para lá com a orelha, ouve o pranto baixinho, chorinho, aterra-se outra vez e desata outra vez a correr, "ó Rui!, ó Rui!".
Contrariado, afobado, Rui segue atrás do João a resmungar mas vai. Vê umas calças de fato de treino pelo caminho caídas no chão, sacode-as, dobra-as depois de as cheirar, chegam e põem-se os dois de atalaia. "E então ouvimos! Era um choro pequenino, era estranho, parecia mecânico, parecia um choro daqueles bonecos a pilhas de brincar", diz o Rui um tanto alterado. Tremebundo, mete a cabeça no ecoponto e vê no mar de tampinhas cor de anil uma perna e um braço gordinhos de bebé a despontar. Grita com a cara lá dentro: "É um bebé!". João chora, ataranta-se, diz que não parou de tremer mas que se sentia a ferver, pontapeia o contentor de ferro, está eufórico. "Vês! Não estou maluco!". Os dois rebentam impetuosos a moldura amarela do ecoponto, gritam como tolos, disparatam, João mete os dois braços lá dentro de uma vez, pega no bebé por uma perna, "era a esquerda", e iça-o cá para fora, protegido na palma da mão, as perninhas a rabear no ar.
"Ele chorava e nós chorávamos também", diz o Rui atrapalhado a mostrar como fez para o embalar. "E assim que o encostei ao peito, ele sossegou logo, calou-se logo, parou imediatamente de chorar, parecia um anjinho, meu Deus, os olhos ainda fechadinhos, como é que isto está aqui a acontecer?!".
O anjinho estava nu, sujo de sangue, exangue, arroxeava - e "estava duro, a cabeça não tombava, reparei logo", diz o João, "e ainda tinha o toquinho do cordão umbilical a sair, coitadinho", diz o Rui, "e o cordão estava mal cortado, foi traçado com os dentes, se calhar ".

Xavier entra em cena a mentir

O que aconteceu a seguir foi confuso porque já ali se juntara muita gente inquietada, a perguntar, a sacar de telemóveis, a vozear, braços no ar. Já o Rui embrulhara o bebé nas calças de fato de treino que pousara em cima do ecoponto, ele o João procuram-se nos olhos, encontram-se, olham os dois para uma mulher acabada de chegar - e depositam-lhe o bebé nos braços emudecidos. A mulher é logo ladeada por dois homens saídos da parte oculta de trás da Lux e internam-se os três, mais o bebé, na discoteca. E essa foi a última vez que o Rui e o João viram o bebé que acabavam de salvar.
Ababelados, meios zonzos, sem saber outra vez o que fazer, João repara que o Rui tinha a cara subitamente fechada e olhava-o de olhos selados, muito sério. Ele aproxima-se, diz-lhe algo que vai ter que repetir - "temos que agradecer, João" - porque a voz se lhe engasgou e seguem os dois em direção à Igreja de Santa Apolónia.
Quando voltaram minutos depois - "Agradecemos a Deus ter-nos posto ali. Foi um ato de confiança d'Ele, com isto Deus disse-nos que conta com nós os dois", relata depois o Rui -, já estava tudo mudado. Já havia televisões, focos agitados, polícias, gente ao redor a ver. E no meio daquele torvelinho reparam em Manuel Xavier, "o que dormia ao nosso lado nas tendas do quiosque, mas com quem nem nos damos assim tão bem", ele era o centro das atenções e falava para as televisões. Pasmados, a boca à banda, retraem-se. Rui procura os olhos do Xavier, Xavier repara, ignora-o num olhar, e continua a acaudilhar os jornalistas que fazem fila para o entrevistar. "E nós vazamos dali, claro", diz o João chateado, "não ia ficar ali a ouvi-lo a mentir". Diz agora o Rui e o seu olhar é mau: "Ele não encontrou nada, não salvou ninguém. É mentiroso. Roubou-nos a história. Roubou! E porquê?".
Manuel Xavier não foi mais visto na rua. "Soubemos que lhe deram uma casa em Cascais, no dia a seguir às televisões, depois apareceu com Marcelo, mentiu a toda a gente, mentiu ao Presidente, armou-se que era o salvador", dizem o Rui e o João. E isto sucedeu a 5 de novembro, faz hoje 50 dias, a história esteve sempre mal contada.

Mãe foi presa e confessou logo

A mãe do bebé é Sara Patrícia, o pai diz não saber quem é. Tem 22 anos, é cabo-verdiana, vivia sem abrigo, usava drogas, prostituía-se, escondeu de todos a gravidez, inclusive do namorado, o Sidnei, com quem dormia na tenda ao lado do Rui e do João. Foi detida pela Polícia Judiciária 72 horas depois. E confessou. Teve o bebé sozinha na rua, não lhe deu nome, não o quis, nunca o quis, deitou-o fora aflita no ecoponto na noite da desesperação. E continua presa em Tires, indiciada pela forma tentada de homicídio qualificado. O Supremo Tribunal negou-lhe a saída da prisão preventiva. Aguarda conclusão de investigação da PJ e acusação do Ministério Público.

O bebé agora está bem

O bebé esteve hospitalizado de 5 a 21 de novembro. Dia 22, a Santa da Misericórdia de Lisboa, cumprindo ordem do Tribunal de Menores, revelou: o bebé "teve alta da Maternidade Alfredo da Costa", "saiu clinicamente bem", "estará com família de acolhimento", "até que se decida o seu projeto de vida".
João Paulo Saraiva, 52 anos, que agora tem os olhos sempre espantados, mesmo se os fecha, continua na rua. Já mudou várias vezes de poiso. Esta semana estava incrustado no viaduto, numa tenda emparelhada com a de Arlindo, o pregador - Arlindo espichou no betão, acima das suas cabeças: "O fim está próximo. De que lado queres estar?". Rui Machado, 54 anos, também largou dali. Dormirá para lá de Xabregas, num condomínio abandonado, os olhos cerrados no frio, e sentia-se a ruir. Ontem terão comido os dois bacalhau. Hoje não sabem se haverá.



Por José Miguel Gaspar

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Nova Póvoa





























O edifício Nova Póvoa, na Av. Repatriamento dos Poveiros, é o prédio com mais habitantes em Portugal. Tem 28 pisos e quase 300 apartamentos, distribuídos por 90 metros de altura.
no verão, chegam a morar mais de mil pessoas. Foi, durante muitos anos, o edifício mais alto da Península Ibérica. Uma cidade dentro da cidade

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

suspensão corporal





















Historicamente, a suspensão corporal começou com diversos usos, Os ritos de passagem, rituais de cura, rituais de penitência, rituais de devoção a divindades e como meio de obter visões deixando o corpo em comunicação com o mundo espiritual. A suspensão foi muito usada para testar a resistência da mente e do corpo, ou mesmo para assustar as pessoas. Tribos nativas americanas e diferentes seitas hindus também utilizaram a suspensão como ritual. As suspensões estão a ser cada vez mais usadas como arte de performance e até mesmo para entretenimento.