O alerta foi lançado pela Associação Nacional de Bombeiros Profissionais: nos últimos quatro anos saíram do país 5600 bombeiros. As zonas mais afetadas são precisamente as de maior densidade florestal, sobretudo Trás-os-Montes. No quartel de Cerva, Ribeira de Pena, o efetivo está reduzido a metade. História de uma corporação em luta contra as chamas, a emigração e o abandono.
«Este foi para França, este está na Bélgica, este mudou-se para a Suíça.» O dedo de Jorge Campos viaja pelos rostos das fotografias que estão penduradas na sala de convívio dos Bombeiros Voluntários de Cerva, pequena vila do concelho transmontano de Ribeira de Pena. O comandante da corporação semicerra os olhos para analisar os retratos – homens e mulheres em formação, a quase todos foi ele quem ensinou as manhas do fogo. E afinal naquelas imagens está a tragédia emoldurada: «Este já morreu, este foi estudar para fora e não voltou, este está em Inglaterra.» Contas feitas, mais de metade do efetivo dos últimos quatro anos desapareceu. De 72, passaram a 35. «É muito grave. Somos cada vez menos e um dia não vai sobrar ninguém. Só quando o país for todo engolido pelas chamas é que os nossos governantes vão perceber o que está a acontecer nos quartéis portugueses. Não precisamos de mais carros. Não precisamos de mais material. Precisamos é de homens.»
Há 25 mil bombeiros voluntários no ativo em Portugal, mais 18 mil profissionais, mas pelo menos 5600 emigraram nos últimos quatro anos. Os números são da Associação Nacional dos Bombeiros Profissionais (ANBP) e o presidente, Fernando Curto, diz que as autoridades estão a ignorar uma calamidade. «Trás-os-Montes é a zona mais afetada, mas o problema é transversal ao interior do país. São regiões que já por si sofrem grandes problemas de desertificação e envelhecimento, que agora são agravados de forma brutal pela emigração em massa para o estrangeiro.» Ou seja, os territórios florestais são precisamente os que estão a perder braços para o combate às chamas. «Em 2015 já levamos mais área ardida do que em todo o ano de 2014. Tememos seriamente pela segurança da nossa paisagem e dos nossos homens. Quando somos poucos para fazer frente aos incêndios, os que ficam sofrem muito desgaste e arriscam-se mais. O que estamos a fazer aos bombeiros é organizar-lhes o suicídio.»
ENCAIXADA NUM VALE DA SERRA DO ALVÃO, Cerva está rodeada de floresta por todos os lados. A vila pertence ao concelho de Ribeira de Pena e fica bem no centro do que há duas décadas era a maior mancha contínua de pinheiro-bravo da Europa – estatuto perdido à conta dos incêndios que destruíram uma boa parte da vegetação. O despovoamento é aqui particularmente grave. Dos 551 habitantes que o município perdeu entre os Censos de 2001 e 2011, 331 moravam naquela freguesia. O concelho de Ribeira de Pena tinha no último recenseamento 6500 habitantes e Cerva 2280. «Temos de esperar por 2021 para os próximos números, mas sabemos que perdemos mais umas centenas nos últimos quatro anos», diz Fernando Lourenço, presidente da junta local. «Aqui não empresas, não há trabalho. Só há água pura e paisagem de cortar a respiração.»
Aqueles montes conhece-os Jorge Campos como a palma da mão. É um homem alto e imponente, 55 anos deram-lhe alguns cabelos brancos, os outros ganhou-os no combate às chamas. Todos o tratam por comandante Juca, é alcunha de família. Os homens que lidera em permanência não são muitos: quatro socorristas, quatro motoristas e um telefonista. É assim no ano inteiro, mas, nos meses de verão, há duas equipas operacionais para proteger a mata dos incêndios. Cada uma tem cinco homens. O resto são voluntários que se juntam às tropas se as sirenes tocarem. «Eu nem quero pensar no que pode acontecer se estalar aqui um fogo grande. Tanta gente foi embora. Homens e mulheres com experiência, que diziam “presente” quando eram precisos.»
Mais de 300 mil portugueses saíram do país desde 2011, segundo o Observatório da Emigração, afeto à Secretaria de Estado das Comunidades. É a maior fuga de população ativa a que Portugal assiste nos últimos cinquenta anos. O assunto tem servido para acender o debate político, com os partidos da oposição a repetirem que está em risco o futuro do país. «O que ninguém parece ter reparado é que isto levanta problemas imediatos e na Proteção Civil a corda está a esticar até ao limite », diz Fernando Curto, presidente da ANBP.
Jaime Marta Soares, comandante da Liga dos Bombeiros Portugueses, responde às críticas com um discurso mais reservado. Admite que o problema é grave, mas diz que está longe da calamidade. «Estamos a reforçar as movimentações de bombeiros entre zonas para colmatar as falhas e não permitir que o país arda sem controlo. Mas qualquer pessoa sensata percebe que se criou um problema estrutural que tem de ser resolvido rapidamente. O poder político, nomeadamente o poder local, tem de investir nos bombeiros. » A sua proposta é pública: se não houver voluntários, é preciso pagar a equipas profissionais que assegurem a viabilidade das reservas florestais do país.
A NOTÍCIA CHEGA POR TELEFONE ao cair da tarde. Há fogo em Mogadouro, sul de Bragança, e as chamas já feriram duas bombeiras. De Braga, Porto, Guarda e Viseu saem colunas de homens e máquinas capazes de dar cabo do inferno. Vila Real leva oito viaturas, cada uma com cinco homens, e Cerva também faz parte da comitiva. Ao todo, 270 bombeiros hão de juntar-se até conseguirem extinguir o incêndio. Estamos a 6 de julho de 2015 e, às dez da noite, o apoio chega ao terreno. Os termómetros marcam 35 graus.
Tiago Silva tem 22 anos e uma paixão genuína pelos bombeiros. Do seu bolso pagou quase todo o equipamento que utiliza – a corporação garante-lhe o básico mas ele adquiriu luvas e proteções, casacos e materiais por gosto, se calhar um pouco de vaidade. Segue no carro com homens bem mais experientes do que ele e no entanto é dos primeiros a entrar em campo. Antes da aproximação às chamas, a coluna cumpre uma volta ao incêndio. «Não te pões a atacar com a mangueira sem perceberes o fogo que tens à frente, senão dás cabo de ti», vaticina Cândido Gomes, 50 anos e o mais velho da comitiva. As labaredas dançam altas no Parque Natural do Douro Internacional. Tentar controlar o que arde de frente é passaporte para mais tragédia.
As ordens vêm de Carlos Pinto, segundo no comando em Ribeira de Pena. «Vamos dar fogo ao fogo.» A comitiva de Vila Real aproxima-se da estrada e, antes que as chamas cheguem ao alcatrão, lança contrafogo montanha acima. Enquanto uns ateiam os matos, outros viram a água para os campos que resistem verdes – se as chamas passam a estrada e descem o vale, está o caldo entornado. A técnica parece funcionar, as labaredas acabam por se extinguir naquela frente e os homens viram-se para outra face do fogo, com Tiago à frente. «Um excelente bombeiro», dirá Carlos Pinto no dia seguinte, depois de o ver passar mais de 24 horas a dar o corpo à batalha.
«Um excelente bombeiro», dirá também o comandante Juca. «Tem de saber crescer com humildade, e, se fizer isso, tem qualidades para ser o futuro comandante desta corporação.» Os elogios são significativos, mas caem em saco roto. Esta é a última época de incêndios que Tiago cumpre. O rapaz estuda Enfermagem na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, passou agora para o último ano e no próximo tem o destino traçado. «Vou emigrar para Inglaterra, como a maioria dos meus colegas de anos anteriores. Em Portugal, ou não há emprego ou fico condenado a ganhar 600 euros a vida inteira. Não dá.»
Enquanto os cinco homens combatiam o fogo no Douro Internacional, outro incêndio deflagrava em Cerva, mobilizando a segunda equipa operacional. «Agora diga-me lá», preocupava-se o chefe Jorge Lourenço, sentado diante do telefone à espera das emergências, «temos duas equipas e muitas ocorrências, se houver mais um fogo quem é que lhe acode?» O presidente da ANBP diz que é esse o problema, precisamente. «Não há bombeiros suficientes, por isso a gestão das operações é feita movimentando carros e homens entre regiões. O problema é que, se queremos cobrir um lado com a manta, estamos a destapar outro. Não é uma verdadeira solução.»
AO FIM DA TARDE AS TROPAS reencontram-se no quartel e metade leva uma noite sem sono, mas aqui não há descanso garantido. «Se o telefone tocar lá vamos nós», diz António Lourenço, para toda a gente. O Tó, que tem 49 anos, três irmãos e um filho que foram bombeiros mas emigraram. «Eu estive 14 anos fora, fui cozinheiro na Alemanha, e em 2001 voltei para Cerva e voltei para o quartel.» É coisa que corre no sangue, ser soldado da paz. Agora o homem consegue fazer 600 euros por mês no verão, três meses de plantão ao inferno, o resto do ano são biscates no que houver. «Antes de emigrar eu tinha sido bombeiro também, nessa altura íamos para os fogos de enxada, chegámos a ir de ambulância.» Hoje não faltam carros – há um autotanque, dois veículos florestais e dois especiais, um desencarcerador, dois ligeiros para levar água à mata, três ambulâncias e mais duas encomendadas, um veículo para transportar pessoas. «E para isto tudo são quatro motoristas a dividir turnos. A garagem está cheia e a camarata vazia.»
O comandante Juca cozinha hoje o jantar. Os homens trazem um fogão e ele agarra-se ao tacho. «Somos poucos mas ainda somos uma família.» Feijão com couves, especialidade regional. Primeiro cozem- se os legumes, e feijão em lata é mais proibido do que acender cigarros em bombas de gasolina. O homem despacha a carne para dentro da panela, água e sal, mais nada. Fumeiro, entrecosto, orelha. Monta-se a mesa para uma boa vintena de comensais. Mas garrafas de vinho só se gastam três, que é preciso conservar os sentidos alerta, não vá o diabo tecê-las.
Alguns voluntários juntam-se à festa. São poucos mas são os homens que acorrerão ao quartel pelo seu pé, se a sirene anunciar catástrofe. Hugo Gonçalves, 31 anos, é um deles. Licenciou-se em Educação Física, é capitão da equipa de futebol da terra e trabalha como auxiliar de ação educativa na escola de Cerva, onde há aulas até ao 9.º ano. «Não é o emprego com que sonhei mas é um emprego, e isso permitiu-me ficar na minha terra. Não me permite ser bombeiro a tempo inteiro, mas sou-o de coração.» O seu grupo de amigos compôs-se ali, entre o socorrismo e o fogo. «Éramos dez da mesma geração. Emigraram todos.» Na sala de convívio do quartel há uma série de taças e troféus, até há quatro anos ainda os bombeiros conseguiam formar uma equipa de futsal. Mas não sobraram jogadores.
Ao jantar Cátia Oliveira vai soltando piadas para os mais velhos, e eles respondem à letra. A rapariga é socorrista, tem emprego todo o ano, completou o ensino secundário em Ribeira de Pena e cumpriu formação na Escola Nacional de Bombeiros. «A princípio fazia-me confusão o sangue, agora ganhei o bichinho de salvar vidas. É uma sensação maravilhosa.» É, como o futebolista Hugo, uma exceção à regra da partida. «Todos os meus amigos foram embora. Alguns emigraram, outros estão a estudar fora e eu sei que eles não vão voltar.» Velhos, muitos, e crianças, algumas – assim é a população do interior português. Gente em idade ativa, praticamente nenhuma. «Já não tenho um grupo de amigos só com gente da minha geração. Isso é um privilégio da cidade. Aqui, desabafo, rio e vou sair com gente de todas as idades.»
FOI O COMANDANTE JUCA que convocou quase todos estes bombeiros para o quartel. O homem trabalha na escola de Cerva, é chefe dos contínuos, convive com a miudagem diariamente. «Antes a rapaziada vinha com 16 ou 17 anos para os bombeiros, agora estou a chamá-los aos 12.» O esforço para angariar gente é tão grande que a corporação organizou no ano passado um Mass Training de Suporte Básico de Vida. A iniciativa foi de Tiago Silva, o enfermeiro que no próximo ano vai emigrar para Inglaterra, e pôs 800 miúdos a aprender os básicos do socorrismo – a maior iniciativa do género em Portugal. «Mas a verdade é que, por cada 14 ou 15 que enviamos para a formação oficial, para que se tornem bombeiros, não há mais de um ou dois a ficar», diz o comandante.
Criar o fascínio é uma parte do processo. O comandante Juca faz muitas vezes no seu jipe o percurso serra acima, para ver todo o vale do Alvão onde está encaixada Cerva – e não são raras as vezes que leva consigo um ou outro gaiato, afinal é preciso estimular. Nesses dias vai mostrando os matos, contabiliza o que já passaram, explica que o fogo sobe e pode projetar-se dois quilómetros, que nunca os homens devem fugir para um vale porque é aí que as temperaturas se concentram e as explosões ocorrem. «Primeiro salvamos as vidas humanas, depois os animais, a seguir as casas.» Todos os bombeiros, de Fernando Silva, que tem 41 anos, a Catarina Silva, 16, sabem a lição de cor.
NO ALTO DA CUMEADA HÁ UMA TORRE DE VIGIA, que as pernas de António Barreira, 68 anos, galgam todos os dias à procura do fogo. Há 23 estruturas de vigilância no distrito, e quase todas estão a cargo de reformados, que ali passam turnos de oito horas aos binóculos. Qualquer lume que rebente é denúncia para o comando. «Antes ainda vinha uma rapaziada nova, mas como só aqui estamos uns meses as pessoas têm de ir para fora tentar ganhar a vida.» O centro de Cerva tem uma série de lojas encerradas. «Há mais casas do que famílias», diz o presidente da junta, e isso explica tantas portadas de janela fechadas – são as habitações de quem emigrou. «Há uns anos chegou a autoestrada e pensávamos ter condições para alguma indústria ligada à floresta, é esse o potencial desta região.» Mas o alcatrão só roubou gente. Vêm alguns turistas, vêm em agosto os que partiram, e pouco mais. O que é certo é que todos esses, mais os que estudam fora e vêm passar os fins de semana a casa, desaguam na praia fluvial do rio Poio, que no verão se torna também no centro notívago.
É ali que fica o Bar das Meadas, que Carlos Fernandes abriu em 2008 com uma filosofia tradicional, mas que os novos tempos o obrigaram a criar adaptações. «O povo daqui pedia habitualmente os produtos regionais, uma taça de vinho, um prato de fumeiro», conta. Essa clientela foi desaparecendo, substituída por quem vive longe – nas cidades, no estrangeiro – e vai aparecendo. Então começou a oferecer uma carta urbana – hambúrgueres e pasta, pasta de atum e baguetes de delícias do mar, morangoskas e gin em copo de balão, com sementes de cardamomo ou pepino. «É a lógica do que as cidades oferecem que vai funcionar, porque a lógica do campo, está visto, não funciona.»
O comandante Juca dá uma última volta de jipe pelo caldeirão, contorna o vale de Cerva e vai soltando os lamentos. «Não sei quanto tempo vai durar esta floresta. E não é só pelos incêndios, não é só pela falta de homens, é por tudo o que isso implica.» Ora se já não há rebanhos como é que a mata é limpa? Se não há ninguém a percorrer os montes como é que os caminhos que cortam o fogo permanecem abertos? «É uma luta», suspira. «E estamos condenados a perder.»
Nessa noite, o homem há de pegar numa mão-cheia de bombeiros e convidá-los para um copo junto à praia. Hão de todos lamentar o abandono a que estão votados, e hão de querer fazer um brinde a desejar dias melhores. Ali produz-se algum do melhor vinho do país, por isso hão de pedir um copo. Mas não há. Há outras bebidas, as que o povo da cidade quer. «É uma luta e estamos condenados a perder», repete Juca. O martírio dos homens que combatem o inferno, afinal, é bem mais alto do que as chamas.
Texto de Ricardo J. Rodrigues
Publicação original em Noticias Magazine
http://www.noticiasmagazine.pt/2015/fugir-do-inferno/