sábado, 23 de dezembro de 2017

Vouzela: natal entre as cinzas no vale onde tudo ardeu


































O dia amanheceu soalheiro, mas não deixam de estar dois graus negativos no vale da Ventosa. É dezembro e em Vouzela respira­‑se aquele ar limpo que só existe nas manhãs de inverno. Dois meses antes, a 16 de outubro, o fumo era tanto que tudo se tinha tornado amarelo, e espesso, e irrespirável.

O monstro tinha chegado na noite anterior, queimara tudo, matara homens e esperança. E agora é difícil esquecê­‑lo: o bosque permanece apocalíptico, o arvoredo retorcido em carvão, as aldeias em escombros. Como nas cumeadas de São Macário já caiu neve, a natureza parece ter tirado um retrato a preto e branco. E isso é desarmante: não há um assomo de verde para descansar os olhos e no entanto o ar respira­‑se limpo, como se prometesse que a primavera há de voltar.

Na noite de 15 de outubro morreram oito pessoas no concelho de Vouzela, a maioria das quais neste vale. Na manhã seguinte, a Notícias Magazine estava aqui para perceber a decisão terrível que o povo teve de tomar no meio das chamas: fugir e abandonar tudo ou ficar para lutar contra o monstro? Dois meses depois, o cenário é igualmente trágico, mas alguma coisa mudou.

A tragédia trouxe uma união sem precedentes ao vale da Ventosa. Houve vizinhos a acolher em casa os que estavam desalojados, a compartilhar o pouco que lhes sobrava, houve desconhecidos que apareceram com roupa, comida, dinheiro e abraços. No meio dos despojos do fogo, também há esta história de humanidade.

Veja­‑se Alcinda Santos, que nem com forças se sentia para celebrar o Natal. Na manhã de 16 de outubro encontrámo­‑la em desespero. Acordara de noite com barulho de chuva e afinal era o lume. Correra a acordar o povo da aldeia de Ânsara – e a maioria abalou, mas ela decidiu ficar para salvar o que pudesse. Não salvou quase nada.

Perdeu a casa e o gado todo, só lhe sobrou uma vaca e um vitelo que conseguiram escapar­‑se do curral. «A mãe morreu umas horas depois de vocês estarem aqui, tinha respirado muito fumo. Então fiquei só com o vitelinho, que agora é órfão, por isso eu digo que ele é o meu menino.»

A ruína da casa deixa­‑a de coração partido, mas quando se agarra ao bicho a mulher é toda sentimento. «Anda cá meu lindo, anda cá meu amor.» Mudou­‑se para outra casa que tinha na aldeia, que é dela e de mais irmãos. «Isto tem muitos herdeiros e sempre tinha havido discussão sobre quem tinha direito a ocupar a casa. Mas assim que aconteceu isto toda a gente disse que a casa era nossa, veja lá se não é bonito?» Vai afagando o dorso do animal e depois atira: «Desde que aconteceu a tragédia aconteceram muitas coisas bonitas.»

Faltam­‑lhe palavras para agradecer às vizinhas. Foi Maria Rodrigues que veio trazer­‑lhe uma pipa de vinho e um presunto quando percebeu que os tonéis tinham ardido todos, e que os porcos que estavam reservados para o fumeiro tinham morrido no incêndio. Foi Glória Moita, a quem arderam os currais todos, a partilhar com ela as batatas que o monstro se esquecera de queimar. «E depois houve muita gente a ver a reportagem que vocês fizeram e a vir cá trazer­‑me coisas. Roupas, loiças, dinheiro.» Gente que não a conhecia mas que soube ler­‑lhe o desespero.

Da Alemanha chegaram cem euros por transferência bancária, e ela não sabe a quem os agradecer. Veio gente de Aveiro e Setúbal, de Águeda e Santo Tirso. «Há esta senhora que veio trazer-me um cachorrinho porque os meus morreram todos queimados. É o Jamel.»

Ao ouvir o nome, o cão corre para a dona e salta­‑lhe para o colo. Ela ri­‑se – e aquele riso é uma sinfonia inteira no meio do carvão. «Há dias apareceu­‑me aqui com uma árvore de Natal de plástico. Eu não a ia fazer porque os pinheiros estão todos queimados, mas ela insistiu e eu trouxe cá a minha neta para montá­‑la comigo.» É à volta dela que a família vai juntar­‑se na noite da consoada. Bacalhau com batatas e vinho da vizinha Maria «E sabe, vou fazer sonhos de abóbora para oferecer a toda a gente. É para ver se deixamos de ter pesadelos com o incêndio.»

O centro de saúde local tem uma psicóloga que anda de aldeia em aldeia a falar com as pessoas, a confortá­‑las e a avaliar sintomas de stress pós­‑traumático. Fernando Correia, 43, ainda anda em sobressalto, as chamas a atormentarem­‑lhe as noites, a memória da pele a queimar. «A psicóloga tem ajudado muito e os irmãos também.» Como perdeu a casa onde vivia na aldeia de Adamo, também no vale da Ventosa, foi acolhido num colégio religioso de maristas que existe na vila. Também lá vivem Piedade e Fernando Fernandes – ela 77, ele 47. São mãe e filho, ficaram igualmente desalojados.

Para Correia, a noite de 15 de outubro foi particularmente cruel. Estava a dormir em casa quando o vizinho lhe veio bater à porta: «Sai senão morres.» E ele bem tentava escapar, mas as labaredas já tinham tomado conta da habitação. Pensou que ou tentava a sorte pelo meio das chamas ou se despedia deste mundo, e então avançou. As roupas pegaram fogo, mas conseguiu passar.

Despiu­‑se, as fagulhas a continuara queimar­‑lhe a pele, mas conseguiu chegar vivo a casa do vizinho. Tinha o corpo com queimaduras de terceiro grau e precisava de assistência médica urgente. «O meu vizinho ligava para os bombeiros, mas eles não conseguiam passar. Ao fim de duas horas veio o genro dele buscar­‑me. Atravessou o fogo e correu risco de vida para salvar a minha. Não sei como poderei algum dia agradecer-lhe.»

Primeiro foi para o hospital de Viseu, mas o caso era grave e teve de ser transferido para o Hospital de São João, no Porto. No dia seguinte, era reencaminhado para Santa Maria, em Lisboa, cidade onde só tinha estado uma vez e onde não conhecia ninguém.

«Então as pessoas da minha aldeia que tinham familiares na capital contactaram­‑nos para que eles viessem prestar assistência enquanto eu estava na unidade de queimados. Todos os dias tive visitas. Encheram­‑me de doces e fruta.» Emociona­‑se: «Durante a noite não conseguia dormir porque sonhava sempre com o fogo, mas de dia estava sempre distraído e isso ajudou­‑me muito. Estou sem ninguém há tantos anos e naquele mês que passei no hospital nunca me senti sozinho.»

Há uma história de solidariedade para contar no vale da Ventosa, mas também é preciso dizer que, para a maioria dos seus habitantes, a recuperação é demasiado lenta. Só no concelho de Vouzela uma centena de casas foram consumidas pelas chamas – e sessenta eram primeiras habitações. Depois houve o gado, morreram centenas de cabeças. «Isto para não falar dos prejuízos em alfaias agrícolas, tratores, armazéns e celeiros. Numa única noite mais de quinhentas pessoas ficaram afetadas e 73 por cento do território do município foi completamente destruído», diz Rui Ladeira, presidente da câmara municipal.

Os trabalhos de reconstrução ainda não começaram, mas o município decidiu adiantar­‑se ao Estado e criar um programa de recuperação de currais para quem teve prejuízos inferiores a cinco mil euros. «Há muita gente que teve estragos superiores a vinte mil mas prefere aderir ao nosso projeto, porque tem pressa de retomar a vida.»

Para Beatriz Augusto, o seu primeiríssimo desejo não é a casa, é um porco. E isso não é pouco quando se sabe que, aos 70 anos, viu arder a habitação onde tinha nascido – e onde, meses antes do incêndio, tinha instalado todo um novo telhado. «Naquela noite fiquei muito aflita por causa dos animais e por causa dos medicamentos para o coração, que tenho de tomar todos os dias.

As paredes são as paredes, mas consegui trazer a coisa mais preciosa que tinha lá dentro, que era uma fotografia da minha mãe.» Como quase todos, viu­‑se na rua aflita, de camisa de dormir e pantufas. «Eu não tinha forças para combater o fogo, mas se Deus me tivesse dado tempo de abrir a porta da pocilga para o meu porquinho poder fugir, não vivia com esta dor no coração.»

Enterrou o animal no dia seguinte à tragédia, quando a terra ainda fumegava. A sua vida era aquele bicho, mais as quatro galinhas que lhe davam ovos. Sobrou uma, e agarra­‑se a ela como uma criança protege uma boneca. «No início queriam pôr­‑me num lar, mas eu não deixei, então quem é que vinha dar de comer à galinha?»

Acolheu­‑a Paula Ferreira, que mora no outro lado da aldeia de Santa Comba, e prometeu­‑lhe que poderia ali ficar o tempo que fosse necessário. «Agora durmo no quarto da sogra da Paula e até estou mais acompanhada.» Não tem descendência, tinha só o gado.

Beatriz ainda não sabe isto, mas Paula, que perdeu um chibo, 14 cabras e 19 cabritos para o fogo, ainda tem três porcos e é bem capaz de oferecer um deles à vizinha, «para ela não se pôr tão triste». Também arranjou uma árvore de Natal pequenina – pode não haver crianças em casa que os filhos já estão crescidos, mas há uma amiga que tem de esquecer as tristezas por uma noite.

O gesto é bonito, mas talvez não seja preciso cumpri­‑lo. O presidente da câmara diz que tem um fundo preparado para quem perdeu animais. «Abrimos uma conta solidária no concelho e temos lá oitenta mil euros. O resto eu comprometo­‑me a utilizar do nosso orçamento, porque sei o afeto com que estas pessoas lidam com o gado, e sei que a espera só ajuda a desmotivar mais a nossa gente.»

Passaram afinal dois meses sem que houvesse ainda uma intervenção digna desse nome. «O problema é que esperamos pelas diretivas da direção regional do centro para poder reflorestar as matas, para organizar as obras nos currais e nas casas», diz Rui Ladeira, que antes de ser autarca era engenheiro florestal.

«E está certo que assim seja, temos de requalificar a paisagem em toda a região, não apenas no município. Mas o processo tem de ser célere, porque não tarda nada é altura de plantar os fenos, e se isso não acontecer vai ser um ano inteiro perdido para o gado.»

Foi lá no fundo do vale que o monstro provocou a maior infâmia. No cruzamento que dá acesso a Vila Nova de Ventosa foram retiradas as placas que identificam as aldeias mais próximas – em outubro elas estavam todas queimadas, algumas caídas, e agora pura e simplesmente não estão.

Mas o caminho preserva­‑se intacto e a primeira imagem que se vê agora quando se entra na povoação é a do casario queimado, ruínas de pedra e carvão. Só aqui morreram quatro pessoas, uma quando tentava salvar o gado, três que dormiam em casa e não conseguiram sair. À porta do que resta da habitação há um vaso de flores e uma vela com uma imagem do Sagrado Coração de Jesus.

Emília Marques, que na manhã do dia 16 tinha vindo mostrar o palco da desgraça, é quem vai todos os dias regar as plantas – e não é que elas precisem assim tanto, porque os dias têm amanhecido húmidos. «Mas sempre fico aqui a pensar um bocadinho.» Dá uma volta por aquele extremo da aldeia, está tudo igualzinho ao que estava há um par de meses.

«Sou eu que faço isto porque sou a única que consegue cá vir. Ninguém quer cá pôr os pés, muito menos a Camila.» Camila Duarte, 62 anos, perdeu ali dois irmãos e a cunhada – e pediu a Emília que fosse lá a casa, todos os dias, rezar um bocadinho na vez dela. A solidariedade dos vizinhos também se estabelece assim, no alívio da carga que retiram uns aos outros.

«Limpar tudo e reconstruir tudo, é só isso que precisamos», diz agora Camila. «Enquanto estiver tudo em ruínas não conseguimos avançar com a nossa vida.» A ideia é repetida, aldeia a aldeia, até à exaustão. E o presidente da câmara dá razão ao povo. Diz que é urgente intervir nos povoados, mas também nos matos.

«Temos de cortar esta madeira toda que está queimada, e ainda não o fizemos porque não temos para onde escoá­‑la. A maioria das serrações ardeu.» Precisam que o Estado os ajude a despachar tanto carvão dali para fora. Urgentemente.

Apesar da morosidade nas intervenções, o autarca acredita que esta tragédia trouxe uma oportunidade. «Temos de repensar todo o conceito da distribuição da riqueza em Portugal. O Estado tem de garantir serviços públicos nas regiões menos povoadas, tem de incentivar a captação de empresas, tem de proteger e compensar os proprietários para que se crie uma floresta saudável e se ponha termo, de uma vez por toda, a esta calamidade.»

Propõe que as novas medidas sejam pagas com impostos das indústrias poluidoras ou com a fatia do IMI do litoral, por exemplo. «Se não mudarmos nada, estamos simplesmente a fazer xeque­‑mate ao interior do país.»

Mabilde Santos sente­‑o na pele. Ela, que chegou há dois anos de Bragança ao vale da Ventosa, ainda matuta se não é luta demasiada ficar a trabalhar a terra. Depois daquela noite de outubro, a mulher considerou voltar à cidade. «Foi o Miguel, o meu homem, que me disse que tínhamos de arranjar forças onde não as tínhamos, que havíamos de lutar juntos pelos nossos animais e pelo nosso pedaço de terra.» Só se têm um ao outro, afinal, e agora que ardeu o seu pequeno paraíso, estão a arranjar formas de torná­‑lo paraíso outra vez.

A casa sobreviveu, mas as persianas e algumas janelas arderam, por isso chove­‑lhes dentro de casa. Vão­‑se remediando com plástico a tapar a água, o mesmo que têm para cobrir o pouco feno que lhes sobra.

«Da última vez que vocês estiveram aqui eu estava feita num oito, foi o culminar de uma depressão de vários meses», conta ela, enquanto vai arrumando a roupa que ficou a secar na sala. «E sabe que o incêndio me fez levantar outra vez. É como se tivesse batido no fundo e fosse obrigada a reagir.»

O casebre onde costumavam secar o fumeiro ardeu, neste ano não vão poder fazer presunto nem chouriças. E no entanto, assim que se sentam à mesa, Mabilde vai buscar umas que trouxe do supermercado para servir as visitas. Não o querem guardar para o Natal? «Na consoada somos só os dois, havemos de ter o bacalhau e rabanadas», diz ela.

Miguel olha embevecido para a mulher: «Vais fazer rabanadas, amor?» E ela responde que vai, porque sabe que ele gosta, e ele pousa a sua mão na dela. Até ao fim do ano ainda contam recuperar um dos currais que o fogo levou, e tal como combateram as chamas juntos, também é juntos que vão construí­‑lo.

Depois do incêndio, Mabilde e Miguel perceberam um bocadinho melhor que a vida não os tinha deixado sozinhos. Que se tinham um ao outro, e que isso era a única coisa que o monstro não podia levar. A história deles é a história de um vale inteiro que se fez cinza. Do meio de um pedaço de terra negra nasceu uma humanidade que agora permite a sobrevivência.

Mas falta fazer tudo, reconstruir casas e currais, limpar matos e trazer animais para a terra. Está na hora de pôr termo ao luto e arregaçar as mangas. «Voltem, venham cá ver como as coisas vão andando», pede a mulher na despedida. Voltaremos, sim.





Texto de Ricardo J. Rodrigues