terça-feira, 7 de abril de 2020

O resgate











Os 31 utentes que estavam num lar privado em Cavalões, Vila Nova de Famalicão, apenas com três funcionárias, foram transportados ao início da noite deste domingo para o Hospital das Forças Armadas, no Porto. Desde sexta-feira que esta instituição está sem funcionários a trabalhar, depois de oito terem testado positivo para o novo coronavírus. A ministra da Saúde avançou que os idosos e as três funcionárias foram esta tarde testados à Covid-19, mas alertou: “Tinham de ter pensado num plano de contingência”.

Um dia dentro do hospital num mundo onde corre um tsunami viral






















































Profissionais de saúde: o cenário irreal da pandemia e como eles vivem uma realidade impossível de desligar. Um dia no Hospital Pedro Hispano: dá vontade de cobrir de pétalas o chão que todos eles pisam.

O tsunami viral avança invisível pelo Mundo e pelas paredes de cada casa, e Deolinda Santos parece demasiado pequenina, ou demasiado encolhida, debaixo dele. A mulher de 57 anos veio de Ermesinde e segue agora, quinta-feira, manhã, fazia sol, a ziguezaguear na fila, espaçada pelo menos três metros entre os outros, em direção a uma tenda branca de onde sai uma música conhecida que ali não parece real. Ela respondeu positivo à 2.ª e à 3.ª de sete perguntas do inquérito à triagem no guiché da Urgência do Hospital Pedro Hispano, Matosinhos, se calhar também à 4.ª, não sabe bem: está de quarentena ou sabe se foi infetada por este vírus? Tem febre? Tem tosse? Tem falta de ar? Tem dores de garganta? Tem dores no corpo? Tem diarreia?
"Tenho sintomas, sinto-me fraca, febril", diz Deolinda, que tossica atrás da máscara, voz a fugir. "A minha mãe estava no Lar Mãe de Jesus, de Leça, e há 30 infetados nas 90 pessoas que lá estão. Tenho medo. Por ela. E por mim".
Deolinda é mandada sentar dentro da tenda erguida no parque de estacionamento do hospital por Paulo Maia, enfermeiro de ortopedia adaptado agora a fazer colheitas e que há uma semana faz turnos de 12 horas dentro de um fato branco de tecido microporoso que o cobre da cabeça aos pés e o faz suar como aos outros cinco enfermeiros que ali estão, irreais como num filme de ficção cientifica. Ele mede-lhe a temperatura, deu 36,8, ela tinha tomado paracetamol, desembainha a zaragatoa do tubo transparente - uma zaragatoa parece uma cotonete, mas maior - enfia-a no nariz da mulher, roda-a, devolve-a ao tubo, etiqueta a amostra e está feito o teste da Covid-19, a doença respiratória causada pelo coronavírus, que seguirá para o laboratório dali, que avia mais de 300 testes por dia.
"Fique atenta ao telefone, D.ª Deolinda", diz o enfermeiro. Se der negativo, recebe um SMS; se for positivo, uma chamada de voz. E Deolinda sai, recurvada, ouvindo o fio do refrão de amor dos Coldplay a reverberar solidão: "Ninguém disse que era fácil / É uma pena termos de nos separar / Ninguém disse que era fácil / Ninguém disse que ia ser tão difícil".
O coronavírus que provoca Covid-19, a doença zoonótica, isto é, errónea, repugnante, brutal, com origem num animal, infetou até à data mais de um milhão de humanos no Mundo, matando mais de 60 mil (266 em Portugal, que tem ainda 10 524 infetados). No Hospital Pedro Hispano, unidade de saúde de 300 mil utentes e onde quem entra mete imediatamente uma máscara, há 68 internados com Covid-19: nove nos cuidados intensivos, nove nos intermédios, 50 em enfermarias.
O silêncio e a estagnação saltam logo à vista no hospital, que parece deserto e calmo e imensamente silencioso mas alberga em média 1178 profissionais por dia, a imensa maioria agora afetos ao circuito de colmeias da Covid-19.
O internado mais recente chega alarmado e exânime, é homem, 59 anos, vem em falência respiratória - o peito nu inerte, o som da sua respiração aflita, fragosa e furada como a de Darth Vader, a ressoar - e entrou de rompante empurrado numa cama de rodas na unidade de cuidados intensivos, entubado e emparelhado num ventilador às ordens do dr. Gustavo Carona.

Cobrir de rosas todo o chão deles

É o local mais irreal do hospital: a unidade de cuidados intensivos, selada, de onde só se entra e se sai totalmente ocluso com máscaras e fatos estanques. Acamam-se ali, onde todo o ar parece ter sido perpetuamente sugado pelo vírus invisível, nove doentes severos, todos sedados em anestesia geral, cercados de monitores que apitam e fios e tubos injetados de soros, remédios e papa alimentar. Estão quase nus, vestem só uma fralda grande, os olhos abertos mas desacordados. E à volta deles o enxame mudo de nove intensivistas, médicos e enfermeiros com turnos de 24 horas, que fazem tudo dentro dos fatos microporosos que os vedam perante o vírus - são dois Gustavos, três Filipas, Vitó, Nélson, Aníbal, Cláudia e Rita e escreveram os nomes simplificados nas costas e no peito a caneta de feltro para que se possam reconhecer encapotados.
Adicto da adrenalina, o dr. Gustavo, 39 anos, atlético, bonito, cumpriu há dez anos a primeira missão humanitária em Moçambique. Desde aí já voou para o Congo, Paquistão, Afeganistão, República Centro-Africana, o Iraque e a Síria e agora cumpre o sentido irrestrito de socorro no seu hospital.
"Às vezes saio de lá quase morto, em modo burnout [esgotamento], por causa da responsabilidade pelas vidas que me passam pelas mãos", diz o anestesista e intensivista de Matosinhos. "Isto assusta", escreveu ele há dias duas vezes no seu Facebook. "Há muito que acredito que a coragem não é a ausência de medo; a coragem é o que sobra quando a motivação supera o medo. E o que vejo é uma motivação que me emociona", relata o médico que alude à união dos profissionais como "um muro de escudos de Vikings".
Ele transmite grande confiança, mas o seu realismo terrifica: "Isto é como ir para a guerra e só aprender a usar a arma já em pleno combate", diz ele sobre a doença que atira médicos para a guerra cega, sem remédios, sem vacina, sem quartel. E assusta-nos mais: "O fenómeno não é só médico; é económico, sociológico, filosófico. E temo que o tempo da cura a seguir mate ainda mais do que esta péssima doença".
A cumprir turnos de 24 horas alternados com um dia de violenta cessação, dá vontade de cobrir de pétalas de rosas todos os passos do dr. Gustavo, como disse a escritora Francesca Melandri, autora de "Sangue justo", que nos escreve de Itália, isto é, escreve-nos do futuro, assim como os passos de todos os profissionais de saúde intensos como ele - como a dr.ª Lídia Alves, internista que é um dínamo, mesmo a dormir só três horas por dia; como a enfermeira-chefe Amélia, abnegada também em turnos de 24/24, que há 15 dias vive com o marido sem lhe poder tocar; como o enfermeiro Paulo Caetano do 4.º andar, que há dias fez a ponte dolorosa de um telefonema entre um doente que ia morrer e a família que se despedia dele sem o poder visitar, sem nunca mais o poder ver.
Num mundo em que estamos todos entrelaçados numa dança dúplice de morte, o Hospital de Matosinhos já duplicou a capacidade de camas para doentes críticos e quadruplicará nos próximos dias essa capacitação, a antecipar o pico infeccioso nacional que chegará até maio.
"O pior estará para vir", diz o dr. Taveira Gomes, cirurgião endócrino e presidente do Hospital Pedro Hispano, que, como todos, anda agora sempre de máscara. "Digo "estará", é condicional, porque temos de ter esperança e porque já estamos a antecipar a batalha a seguir". É o primeiro a atear o grupo e a coesão, tão cruciais, até porque o grupo não vai quadruplicar como as camas da crise vão.
É um general orgulhoso, fincado no seu posto, e só fraqueja um segundo na longa conversa de confiança e resolução, quando lhe falam ao coração: "É a primeira coisa que vou fazer quando isto passar, abraçar o meu filho e a minha nora, que está grávida, e o meu novo neto que ainda vai nascer".

Quanto tempo dura a eternidade

Afastado dos seus fiéis no piso 0, o padre Avelino Ferreira, capelão do hospital, passa agora os dias em casa "em desolação e incredulidade", sem poder segurar nas mãos dos doentes, de os confortar como sempre fez. "Neste novo mundo inimaginável, a fé não é miraculosa, não nos dá respostas seguras, a força esvai-se", diz o padre a sublinhar que "nunca vira uma Páscoa cancelada". Ansioso "pela aleluia, pela reunião", o padre Avelino só pede "que esta pandemia que nos assusta tanto, não nos congele" e que "possamos sair dela mais unidos, mais fortes de espírito". Mas "o tempo é de humildade", diz ele a olhar fixamente a pequenina bandeja de cinzas posta em cima da mesa da capela onde há demasiados dias não há celebração: "Lembra-te, Homem, de que és pó e ao pó hás de voltar".
Não sabia ainda, o padre, mas naquele dia nasceu um bebé, o segundo da semana, no seu hospital. A mãe está infetada, o pai também, o bebé foi testado e - respiraram fundo os dois - deu negativo.
Mas eles doem cheios de melancolia, ainda não puderam tocar sequer no seu bebé. Quando é que o vão poder abraçar, embalá-lo, abafá-lo todo cobertinho de beijos? Não sabem. Não sabem quanto tempo esta eternidade vai durar.



Por José Miguel Gaspar