quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

O quarto assalto

























"O quarto assalto", uma iniciativa de um grupo de investigadores da Faculdade de Arquitetura, na qual a população pode visitar imóveis históricos e fechados à muitos anos. Desta vez foi o histórico prédio dos Armazéns Cunha.


domingo, 5 de fevereiro de 2017

Os 10 anos dos Deolinda











Os Deolinda celebram 10 anos de carreira e atuaram no Coliseu do Porto.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

O tempo do fumeiro







































Joaquina matou o porco ontem, mas agora precisa de ajuda para preparar as farinheiras. Em
Outeiro do Rio, aldeia de Montalegre, o povo já não é muito, e quase todos são família. Por isso
vêm primos daqui e dali ajudar à confeção das farinheiras, hoje é em casa de Maria Joaquina
Portelada, amanhã ela retribuirá o favor. «Desde que não falte comida e vinho, ninguém se importa
de ajudar», diz a mulher, que já acendeu o lume e deixa ali a cozer a carne. Quatro horas hão-de
ficar os pedaços de porco a ferver em sal, antes de se lhe juntarem as farinhas e o sangue, um
pedaço valente de caldo e uma série de temperos. Está uma boa dezena de vizinhos de roda disto
tudo, e têm mãos experimentadas. Nos próximos quatro ou cinco dias, quando terminarem os
trabalhos do campo, hão de juntar-se ali para encher as tripas e pendurar os lombos. Aqui, a
tradição cumpre-se à antiga, sem máquinas nem tecnologia.
O fumeiro, que durante séculos foi o sustento e a resistência do povo de Montalegre contra o frio e
o isolamento, está hoje a tornar-se numa das duas maiores riquezas. Na próxima quinta feira, 26, e
até domingo, 29, haverá na capital do concelho a 26a edição da Feira do Fumeiro, uma das maiores
do país. «Por esta altura movimentam-se no município três milhões de euros, o que é muito
relevante para a economia local», diz David Teixeira, vice-presidente da autarquia. «A Feira é
visitada por 50 a 70 mil pessoas e os 85 produtores presentes vendem 50 toneladas de produção.
Portanto, é um cluster económico em crescimento e onde queremos apostar muito mais. Até
porque o interior do país não pode viver só da paisagem.» A Câmara está aliás a incentivar a
modernização de várias unidades pequenas, com o objetivo de torná-las médias. «Mas não
enormes. Queremos manter os padrões de qualidade e a produção artesanal».
Tradicionalmente, o fumeiro não se vendia, era oferecido às visitas e aos familiares, e consumia-se
em casa do Natal à Páscoa. Guardava-se uma chouriça para dar os Reis, o melhor salpicão para o
padre, a orelha para o entrudo. Chegando o verão ainda tinha de se oferecer algum aos homens que
vinham ajudar na ceifa. «Mas com o tempo as pessoas começaram a perceber que este era, na
verdade, um bom negócio», diz Manuel Duarte, um dos maiores produtores da região. Por estes
dias anda sem tempo quase para respirar, tamanha a empreitada do que tem para preparar. Todos
os anos mata 35 porcos na aldeia de São Vicente da Chã. A altura da Feira é a mais atarefada. O
resto da produção é vendido a restaurantes um pouco por todo o país e segue para França,
Luxemburgo e Suíça, abastecer o mercado da saudade. «Num anexo da casa fiz uma cozinha de
fumeiro, que cumpre todas as normas, porque comecei realmente a aumentar a escala. Nunca
pensei que as coisas fossem tomar esta dimensão. Para mim, o fumeiro é a memória de infância do
dia da matança, do sangue a cozer nas panelas e o povo a comer o sarrabulho. Tornou-se, na
verdade, muito maior do que isso.»

Há uma fábrica que produz em maior escala, chama-se Fumeiro de Barroso, mas o grosso do que
se faz segue os métodos antigos. «O mais interessante é ver que, dos 214 produtores certificados,
80 por cento são jovens. O fumeiro está a ajudar a nossa população a resistir ao apelo da
emigração», diz Orlando Alves, presidente da autarquia. Um bom exemplo disso é Márcio
Azevedo, 36 anos, um advogado de Braga que resolveu voltar à aldeia de Cabril, onde cresceu,
para produzir presuntos, alheiras e chouriças. «É uma das atividades mais tradicionais que existem,
e por isso é capaz de nos ligar verdadeiramente à terra. Há uma competitividade entre as famílias,
há um receituário e um método que é secular e isso torna um produto num fator de identidade. O
fumeiro é um produto que aqui ganha características únicas. E por isso é o orgulho da terra.»
O frio é o fator decisivo para explicar o reconhecimento do fumeiro de Montalegre. É um dos
territórios mais altos do país, quase todo o município localiza-se acima dos mil metros. «A própria
quantidade de oxigénio é diferente e isso melhora a qualidade carne», diz Acácio Moura, que, há
pouco mais de um ano, quando era presidente da junta de freguesia, decidiu formar na aldeia uma
cooperativa de produção de porcos de raça, a CoopBízaro. «Juntámos quotas entre a população,
adquirimos três hectares de terreno em altitude e instalámos a pocilga.» No final de 2015,
adquiriram 13 fêmeas e 2 machos. Na Páscoa, contam ter 50 fêmeas e uma forte produção de
fumeiro para o próximo ano. «Percebemos o potencial deste setor e investimos. Os animais vivem
ao ar livre e alimentam-se de bolota e produtos naturais. Queremos criar produtos de alta
qualidade, que é isso que esta região tem para oferecer.»
O seu filho, José Moura, alinha pela mesma batuta. É produtor e mostra-nos a sala onde secam os
presuntos. «Se tivermos bons porcos, as condições do terreno tratam do resto. E temos de convir»,
ri-se, , «isto é um hotel para porcos.» Tem 35 anos, toda a vontade de permanecer ligado à
pecuária e aponta outro fator determinante para a qualidade dos produtos fumados na região de
Barroso. «A lenha com que é seco é o carvalho, que produz menos fumo mas maior intensidade de
calor.» Então o processo de fumeiro é mais uniforme, com a transformação da carne a acontecer
nas camadas interiores ao mesmo tempo que no interior.

Uma boa parte do que será vendido na Feira de Fumeiro enfeitará as mesas de alguns dos melhores
restaurantes do país. Mas há um culto do produto que traz uma multidão cada vez maior de gente
aos restaurantes da região. Que o diga Maria Veloso, cozinheira do restaurante Dom Pedro, na
aldeia de Pitões das Júnias. De novembro a abril não há fim de semana em que não chegue um
autocarro de turistas para provar o Cozido à Barrosã, a versão regional, feita sempre com carnes de
fumeiro. «É o prato principal da casa, mais de metade dos pedidos são de cozido. Sobretudo no
Inverno, mas no verão vêm às vezes uns emigrantes com saudades de encher o estômago e pedem-
nos este prato. E nós fazemos, claro.»
A mulher prefere o trabalho às palavras, e vê-la de roda dos tachos cansa mesmo quem estiver
sentado. Num tacho há batata e cenoura, no outro cozem-se as carnes fumadas. Há um pedaço de
vitela e outro de costelinha, depois vai o focinho e a cabeça de porco, a chouriça, o chouriço azedo
e a sangueira, que é uma versão mais ácida da morcela, mas igualmente feita com o sangue do
animal. No caldo cozinham-se as couves, que crescem na água do Gerês e na altitude de um dos
mais elevados planaltos do país. É um tesouro servido numa travessa. Cada dose custa 18 euros, e
dá pelo menos para duas pessoas.
No centro de Montalegre, perto do castelo, o fumeiro pode provar-se como petisco num dos
melhores restaurantes de Trás os Montes. A Tasca do Açougue é um espaço agradável, construído
em pedra e madeira e onde todos os caminhos parecem conduzir a uma daquelas lareiras
tradicionais, onde o fogo se ateia no chão. As paredes estão decoradas com quadros de António
Alijó, artista que divide os dias entre Montalegre e Vila Nova de Cerveira. Mas o melhor é a
cozinha. Ali serve-se, pois claro, fumeiro de produção própria. Apesar de servir o cozido no
iverno, este é um lugar para experimentar algumas das melhores alheiras do país. Também há as
inevitáveis chouriça e sangueira, além do pernil, servidos como tapas e acompanhadas com pão de
centeio. Não é preciso complicar os sabores simples.

No capítulo tradicional, não se pode passar ao lado da Taberna de Padornelos. É uma antiga
hospedaria onde, conta o dono da casa, já estiveram alojados Camilo Castelo Branco, Ferreira de
Castro e Miguel Torga. Hoje, tem duas salas, cada uma com uma mesa larga, e onde só se servem
grupos a partir de dez pessoas. É preciso reservar com cinco ou seis dias de antecedência, para
haver tempo de matar os animais e roubar os vegetais à terra. Pode ser galinha do campo ou
cabrito, vitela barrosã ou, pois claro, o belo cozido de fumeiro. As alheiras de Ricardo Moura,
dono do estabelecimento, são também elas famosas – e já arrancaram prémios na Feira do
Fumeiro. Presunto é certo na mesa. «É famoso o de Chaves mas sempre foi fabricado nesta região.
Estamos perto, e era de lá que seguiam para Lisboa, quando havia comboio.»
Junto à estrada nacional que vai para Braga, na aldeia do Antigo de Viade, o restaurante Dias anda
a ensaiar propostas novas. Dois irmãos, Sofia e António Dias, tomam conta dos destinos do
espaço. A sala moderna parece anunciar o que vai aparecer na mesa – e há folhados de alheira
aromatizados, sangueira com maçã, chouriça com ananás e presunto com cogumelos para entrada.
O cozinheiro é ele, gosta de inventar. É-lhe reconhecido o talento criativo em pratos como o
tomate recheado com alheira ou a açorda da mesma. Mas também a mão sólida para as feijoadas e
o rancho, onde o fumeiro também brilha. Já Sofia toma conta da unidade de produção familiar
onde se matam todos os anos uma vintena de porcos para fazer fumeiro. Mas é uma alma criativa e
inventou um produto inovador: a alheira de cogumelos. «Só para a feira produzo umas cinco mil,
mais as que vendo a restaurantes de Lisboa e Porto.» A fonte de inspiração de ambos, dizem, é a
avó Olímpia, que abriu as portas da casa e era cozinheira de mão cheia. Em cima dessa tradição,
estão a construir uma nova: a deles.
E, para quem quiser uma experiência mais autêntica, há uma empresa local que organiza viagens
gastronómicas para viver toda a experiência do fumeiro. A NaturBarroso, que é especializada na
marcação de trilhos pedestres na região, tem um programa de fim de semana, com alojamento
incluído, em que num dos dias se pode assistir à desmancha do porco depois da matança, provar
rojões, costelas e sarrabulho e por fim comer um cozido à Barrosã. Se o sol permitir faz-se a festa
na rua, numa mesa corrida. Com frio vai-se para dentro de casa, mas com o mesmo espírito. «Tem
de se experimentar as coisas como elas são», diz João Dias, diretor da empresa. «E o que
proporcionamos não é uma coisa para turista ver. Come-se com as mãos, um tipo fica todo
besuntado de gordura e é, na verdade, uma valente javardice. Mas também é das melhores coisas
que existem.»

O mundo do fumeiro não, na maior parte das vezes, elegante. É comida que nasce da necessidade
de um povo em reservar alimento para os meses em que a terra nada oferece, é um ato de
resistência contra os elementos. E, nesse suíno aproveitamento, conseguiram as gentes criar uma
preciosidade. Forte e rude, mas intenso e verdadeiro. Percebe-se muito bem a alma das terras de
Barroso quando se prova um pedaço do seu presunto.

Por: Ricardo J. Rodrigues