sábado, 29 de fevereiro de 2020

A ordem de despejo de Joana Pacheco da casa na Ribeira onde mora com os dois filhos




























A ordem de despejo de Joana Pacheco da casa na Ribeira onde mora com os dois filhos, de oito e 12 anos, foi executada está sexta-feira de manhã. Os ânimos estão exaltados na Rua da Fonte Taurina.

"Chamaram-na para uma reunião na Domus Social e aproveitaram para fazer o despejo", grita um vizinho, inconformado com a retirada dos bens da casa onde Joana vive com os dois filhos menores.
Os moradores da Ribeira, que acompanharam a luta de Joana para ficar na casa, não se conformam com o despejo. Na rua, há gritos, lágrimas e palavras de angústia.
Joana Pacheco, 39 anos, que vivia numa casa camarária da Rua da Fonte Taurina, com os filhos, oito e 12 anos.
O processo arrasta-se desde 2017, logo após a mãe de Joana ter morrido e a rececionista de um hotel ter-se visto forçada a abandonar a casa onde morava para ir cuidar do pai, de 89 anos.

Desde então, tem multiplicado tentativas para regularizar a sua situação. "Saí do agregado dos meus pais em 2012. Aluguei uma
casa a dez minutos de onde sempre morei com eles. Mas, quando a minha mãe morreu, de imediato regressei para cuidar do meu pai. E esse mesmo ano pedi a minha reintegração no agregado", contou Joana, ao JN.
Apesar de ter andado três anos a solicitar à Autarquia para ser reintegrada no agregado do pai, titular da habitação, o pedido foi-lhe sempre negado.

Com a morte do pai, há dois anos, Joana passou a assumir o pagamento da renda e tem, inclusive, os recibos passados em seu nome. Mas para o Município isso "não representa o deferimento da mudança da titularidade" e ordenou que Joana saísse da
casa, que, considera a Autarquia, "está a ser ocupada abusivamente".


terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

BREXIT
 “Se não chegar a Inglaterra vou morrer a tentar”






















































Atravessar o Mediterrâneo, contornar a polícia, invadir camiões e arriscar a vida para dar o salto. Há milhares de migrantes desesperados para chegar ao Reino Unido nestes dias de Brexit. Na rota do sonho inglês


O sonho inglês


São duas da manhã e os termómetros marcam dois graus negativos, mas Rachid Bndoba, um argelino de 31 anos, quer lá saber do inverno. “Depois de passares 12 horas no contentor-frigorífico de um camião, ficas vacinado contra o frio. Pelo menos na rua podes andar para a esquerda e para a direita, aqueces um pouco.” O homem está no alto de uma duna na praia de Zeebrugge, a observar os veículos pesados prestes a embarcar nos ferries para Inglaterra. Há 20 dias que tenta passar a vedação e esconder-se num deles. “Ou sou apanhado pelos guardas, ou então pelos camionistas. Mas, para mim, é Inglaterra ou nada. Se não conseguir, vou morrer a tentar.”
Desde que as autoridades francesas fecharam os campos de migrantes em Calais e Dunquerque, a pequena vila belga de Zeebrugge tornou-se o novo destino de quem tenta atravessar clandestinamente o Canal da Mancha. Foi por aqui que embarcou o camião-frigorífico inglês onde 39 vietnamitas perderam a vida em outubro do ano passado. “Nas últimas semanas temos assistido a um verdadeiro pico no fluxo de migrantes”, diz Dirk Van Nuffel, comissário da polícia de Bruges, que patrulha esta parte da costa belga. “Na última quarta, 22, apanhámos mais 23 migrantes dentro de um camião frigorífico e, só na última semana, detivemos 103 pessoas sem papéis. O Brexit está a criar uma corrida verdadeiramente angustiante.”
A crónica do desespero pode contá-la Rachid, que veio para Zeebrugge com mais cinco companheiros. “Dois já conseguiram passar, dois ainda estão aqui comigo e o outro morreu afogado. Tentou construir uma jangada com bidons de plástico e meteu-se na água de madrugada. Acabou por morrer a 50 metros da costa.” Ao seu lado tem Said Balale, 21, e Mustafa Bourish, 17, ambos líbios. “Eu entrei por Espanha, eles por Itália. Pagámos milhares de euros para nos levarem a Londres, mas fomos enganados.” Largaram-nos a meio do caminho, no parque de estacionamento da estação de serviço de Berchem, no Luxemburgo.
Nesse dia Rachid rumou a Esch-sur-Alzette e, à noite, tornou às bombas de gasolina. Foi então que lhe apareceram quatro rapazes da Líbia, e que decidiram seguir caminho juntos. “Quando és clandestino tornas-te rapidamente especialista no negócio das exportações”, diz Said meio a brincar. “Começas a olhar para os camiões e a tentar perceber que produtos transportam e para onde os levam.” Pouco passava das quatro da manhã quando se meteram num contentor frigorífico de matrícula romena – que sabiam ter marcha provável para Hull, em Inglaterra. “Não estava selado por isso talvez desse. Então entrámos.”
Ainda demorou umas boas horas até o veículo arrancar. Não se podiam mexer muito, e o frio ia-lhes enregelando os ossos. “Quando passei o Mediterrâneo da Algéria até Almería achei que tinha feito a pior viagem da minha vida. Fui com mais 48 pessoas num bote, havia muitas mulheres e crianças, estava frio e a ondulação era terrível. Mas isto ainda era pior”, diz Rachid. As cãibras, primeiro, e depois nada, só um frio que paralisava. “É como se te fosses afogando devagarinho. Mas, em vez da água, sufocas dentro de um frigorífico.” Foram apanhados à entrada do porto de Zeebrugge, quando a carga foi revistada. “Foi o melhor que nos podia ter acontecido”, diz o argelino. “Ficámos uns dias detidos, é verdade. Não chegámos onde queríamos, também é verdade. Só que, se continuasse mais um minuto lá dentro, já não voltava a sair com vida.” E agora, no entanto, diz-se disposto a tentar de novo.
“É difícil controlarmos as redes de tráfico porque elas operam a partir do Norte de África”, explica o chefe da polícia de Bruges. “As pessoas fazem todo o pagamento antes de embarcarem. Atravessar o Mediterrâneo, cruzar toda a Europa e entrar em Inglaterra - é isso que eles compram. Usam os camiões frigoríficos porque escapam aos scanners. Os que vêm parar a Zeebrugge são os que foram enganados e deixados a meio do caminho. Chegam sem dinheiro, sem roupa, sem nada. Já não têm mais nada a perder. São capazes de tudo para chegar ao outro lado.”
Bem pode o Reino Unido sair da União Europeia que, para milhares de migrantes, Inglaterra continua a ser sinónimo de El Dorado. “Na Europa tens de pedir asilo, ficas meses à espera de uma resposta, e nesse tempo todo nem sequer podes trabalhar”, explica Said. “Nós fugimos dos nossos países porque queremos uma vida normal, percebes? Ali tu chegas e começas logo a compor a tua vida.” Os cidadãos britânicos, de facto, não possuem cartões de identidade, o que facilita a entrada dos migrantes no mercado de trabalho. Então a marcha para Norte segue apressada. “Temos de passar antes que eles reforcem as fronteiras”, diz Mustafa, o mais novo de todos. “É agora ou nunca.”


Gatos pardos


O sonho inglês é uma história noturna. Se durante o dia os migrantes percorrem a cidade de café em café para se aquecerem, à noite posicionam-se em lugares estratégicos de observação e refúgio, à espera de uma oportunidade para furar as barreiras de segurança e embarcar nos ferries. Ao crepúsculo, há sempre um grupo que se junta nas dunas da praia de Zeebrugge. Numa vila que é toda plana, encontraram o promontório que lhes permite perscrutar todo o porto sem serem vistos.
“Estás a ver estes camiões”, e Rachid aponta o dedo a uma estrada mais adiante. “Vão para a Suécia. Às vezes há quem consiga passar pelos guardas e embarcar, mas vai parar a outro sítio que não a Inglaterra. Sabemos isto porque voltam passado uns dias e nos contam.” O risco do destino errado soma-se ao da travessia. Quando se metem num camião, estes homens jogam o jogo das probabilidades.
Nunca permanecem demasiado tempo no areal. Não é tanto pelas visitas regulares da polícia, é pela ventania cortante que não lhes permite prolongar a espionagem. Agora têm de matar tempo. Ali perto há uma caixa de eletricidade onde conseguiram fazer uma abertura e criar uma ligação para carregar os telemóveis. “As nossas famílias empenharam todas as suas poupanças para chegarmos a Inglaterra. Se passarmos, a primeira coisa que queremos fazer é ligar-lhes a dizer que conseguimos”, explica Rachid.
São sobretudo homens entre os 18 e os 35 anos, os que vagueiam nas sombras de Zeebrugge. Rachid diz ter pago 1900 euros aos traficantes, Said e Mustafa avançaram 1200 cada um. Não tardou muito para se verem de bolsos vazios. “Viajamos leves, sem carga”, diz Rachid. “Às vezes roubamos roupa dos estendais, ou comida das lojas, mas também vasculhamos restos no lixo.” Valeu a pena sair do país de origem? “Em casa não temos nada à nossa espera. Na Líbia há guerra, na Argélia não há horizonte. Se tu vivesses num sítio assim, ficavas?”
O breu já caiu quando os rapazes decidem avançar. Aproximam-se da vedação do porto através de um bosque, e redobram os cuidados à medida que se acercam dos camiões. Agora é esperar. “Temos duas hipóteses. Ou apanhamos um contentor que não esteja selado, ou enfiamo-nos por baixo, na carroçaria.” Esta segunda opção é muito mais perigosa, por isso só a tomam quando conseguem meter-se num veículo que já tenha passado a barreira portuária e só cumpra umas dezenas de metros até chegar ao ferry.
O problema de entrar pelo porto é a videovigilância. “Os guardas nós vamos conseguindo controlar, mas desde que morreram aqueles 39 vietnamitas as autoridades belgas encheram isto de câmaras”, explica Said. “Às vezes pensamos que conseguimos e daí a nada aparece a polícia, que afinal viu tudo.” Com 20 dias em Zeebrugge, os três homens dizem-se frustrados. Já tentaram saltar a vedação e entrar pelo porto, já tentaram entrar nos camiões pelos parques onde ficam estacionados com a carga, até já tentaram entrar pela linha de comboio – caminhando quilómetros para o interior e saltando para uma carruagem de mercadorias. “Fomos sempre apanhados.”
Mas esta noite dão com uma brecha na segurança. Num lugar ermo onde o arame farpado encontra o mar há uma rampa de terra que lhes permite passar para o interior do porto, muito perto do lugar onde os camiões entram para o ferry. A escuridão é total. Não há qualquer movimento. Rachid, Said e Mustafa avançam agachados por entre os veículos até à dobra da rede. Os pés entram na água, mas conseguem passar. Correm para trás de um contentor. E depois desaparecem na noite.


Ronda dos quatro caminhos

São nove da noite quando os inspetores Jaymie Ide e Zoë Miot chegam à praia de Zeebrugge. No momento em que começam por inspecionar as dunas, abate-se uma carga de água sobre a vila belga. “Aqui não hão de estar, com este tempo”, diz o agente. “De certeza que foram procurar refúgio – e quando os migrantes procuram refúgio, nós temos problemas.”
Na povoação existem quatro bairros. A gare, onde vivem os pescadores, a zona cercana à igreja, habitada por trabalhadores portuários, a marina, onde vivem os altos quadros das empresas de transportes, e a praia, onde belgas de todo o país têm as suas casas de férias. É neste último quarteirão que as coisas são piores. “Quando o frio a chuva aperta, eles simplesmente partem um vidro e entram. Roubam a roupa, a comida e dormem ali, estão abrigados.”
O carro da polícia para junto a uma casa em frente ao mar. Portas e janelas foram tapadas a tijolo, mas há uma pequena entrada nas traseiras que foi isolada com tábuas de madeira. “É por aqui que eles vão”, e Zoë aponta a lanterna para o buraco. Uma vez entrámos aqui e demos com uma sala que era usada como casa-de-banho e estava infestada de fezes. Os vizinhos não aguentaram mais e decidiram emparedar as casas pelas próprias mãos. Mas não funciona.”
No último ano a tensão cresceu entre os migrantes e os 20 mil habitantes de Zeebrugge. “Em 2016 começaram a chegar pessoas da Síria, do Iraque e do Afeganistão e pode dizer-se que houve uma certa solidariedade porque os seus países estavam em guerra. Mas neste momento temos sobretudo gente do Norte de África, que vem por motivos económicos. E as pessoas estão fartas deles”, considera o inspetor Ide.
No relatório policial do último mês vê-se que argelinos, líbios, marroquinos e tunisinos representam mais de metade das detenções. Durante o ano de 2019, o partido de extrema-direita flamengo Vlaams Belang organizou uma série de manifestações de protesto na cidade e, nas eleições federais de maio, subiu de 5 para 16%, tornando-se a segunda força política na região. “Qualquer crime que se cometa aqui acende o rastilho do ódio. É por isso muito importante que façamos uma vigilância eficiente.”
Dentro do porto manda a polícia federal, mas as ruas de Zeebrugge são deles, da polícia de Bruges. Então a ronda continua pela igreja, onde os agentes vão pedindo os papéis aos migrantes que encontram no caminho, e como a chuva não para acercam-se do bairro dos pescadores. Algumas embarcações foram trazidas para terra firme, o que as torna um alvo apetecível para dormir. “Cá está”, grita o inspetor Ide depois de subir a bordo do “Twee Honden”, ou “Dois Cães”. Há um vidro partido, uma porta que se abre por dentro, um retrato de família que foi deixado para trás. “Quem aqui esteve já partiu. Muito possivelmente já está em Inglaterra.”
Quando avançam para o parque de estacionamento de um armazém, passam cinco vultos a correr. “Estão a tentar entrar num camião, vamos”, grita a agente. Ligam as sirenes e os homens tentam fintá-los pelo meio dos veículos. “Pela esquerda, pela esquerda”, diz Zoë Miot, e o inspetor Ide roda o volante fazendo chiar os pneus. Mas diante dele há um passeio e um monte de lama que o carro não consegue passar. Os migrantes passam a estrada e embrenham-se nas ruas da vila, a perseguição termina aqui. Os polícias voltam atrás para falar com um camionista romeno chamado Julian Cutila. “Estavam a tentar entrar no meu camião”, confirma ele, “mas nem sabem a sorte que tiveram. É que eu hoje sigo viagem para a Finlândia.”


A sopa da discórdia


Todos os dias, às cinco da tarde, o pastor de Zeebrugge, Fernand Márechal, prepara uma sopa de peixe e serve-a aos refugiados. “Faço isto há seis anos, nunca sei quantos vêm. Uns dias aparecem seis, outros dias 15, às vezes são 30.” O padre reparou que, à medida que o Brexit se aproximava, iam aparecendo mais bocas com fome. Foi ali que conhecemos Rachid.
“Estes homens chegam aqui numa condição psicológica aflitiva”, diz o pároco. “O que eles passaram até aqui chegar é absolutamente desumano.” Márechal tem dificuldades em perceber a Bélgica, que precisa de trabalhadores mas não dá uma oportunidade aos homens que atravessam a Europa à procura de uma vida melhor. “Há muita gente que diz que eles nos querem roubar os trabalhos. Mas quando olhamos para os trabalhos de menor condição, vemos que nenhum belga os ocupa. Então eles ficam sem ninguém. E estes rapazes ficam de pernas e mãos atados, resta-lhes arriscar a vida e tentar chegar a Inglaterra.”
Não é só a fome e a loucura de tudo o que passaram, na viagem até Zeebrugge, estes homens também acumulam mazelas. Em 2016, os Médicos do Mundo abriram aqui uma delegação para atender os migrantes. Todas as segundas-feiras, dois médicos e quatro enfermeiras dão consultas gratuitas a estes homens. “Muitos pedem-nos ansiolíticos, antidepressivos, mas isso recusamos. O tratamento psiquiátrico requer um acompanhamento que aqui é impossível funcionar”, admite Luc Foucart, o clínico de serviço.
“Mas isso não quer dizer que eles não cheguem aqui em farrapos. Vêm com os sonhos perdidos, quando chegam a Zeebrugge percebem que tudo aquilo que imaginaram se tornou um pesadelo”, conta o doutor Foucart. Dá um exemplo que o comove. “Às vezes vejo-os a fotografarem-se junto de carros de grande cilindrada e a mandarem essas fotos às famílias. Preocupam-se em lavar-se e ter um ar arranjado antes de fazer as imagens. Querem dizer a quem ficou lá atrás que estão bem, que estão a correr atrás de tudo o que sonharam. E emociono-me quando vejo que não é nada assim.”
Rachid veio à consulta, tem febre e dores no corpo, o médico diagnostica-lhe uma amigdalite. “A maior parte dos casos que tratamos são traumas, que fazem quando caem dos camiões, ou cortes, porque a rede das vedações é demasiado afiada.” A hipotermia é uma preocupação constante, não falta quem chegue ali e lhe desmaie de fome. “Aquela sopa que o padre Márechal lhes dá é muitas vezes a única coisa que comem numa semana. É tão desumano, isso.”
A refeição quente é no entanto polémica. As manifestações da extrema-direita acontecem todas à porta de casa do pároco, um líder do Vlaams Belang acusou-o de ser um traidor da Bélgica. Do alto dos seus 71 anos, Fernand Márechal tem a resposta preparada. “Sabe o que fiz quando ouvi isso? Instalei dentro da Igreja uma estátua e um quadro sobre os refugiados. Chama-se ‘Import-Export’ e retrata como a Bélgica exporta bombas para estes países para depois importar refugiados.”
Nas traseiras de casa tem uma arrecadação cuja porta está sempre aberta, há homens que vêm e vão e vão deixando os seus pertences para trás, que depois outros migrantes aproveitam, até conseguirem dar o salto.
“Eu nunca sei quando eles desaparecem. Calculo que os que não voltam são os que conseguem chegar a Inglaterra”, diz o padre. Às vezes a polícia detém um ou outro homem por uma noite – depois disso, são sempre soltos. Outras vezes os que não conseguem passar a vedação voltam uma noite, e outra noite, e depois outra, até não voltarem mais. E o pároco de Zeebrugge até já se tinha afeiçoado a Rachid, Said e Mustafa, que voltaram muitas vezes. Jantou com eles no domingo, e na segunda-feira, e novamente na terça. Mas nessa noite eles encontraram uma brecha na vedação, contornaram o arame pelas águas frias do Mar do Norte e desapareceram para dentro do porto. E depois não voltaram mais.




Por: Ricardo J. Rodrigues