Foram precisos 52 anos para o círculo se fechar. Em 1965, durante a Guerra Colonial de Angola, um grupo de soldados portugueses encontrou uma bebé no mato. Batizaram-na Isabel Batata Doce e trouxeram-na para Portugal, onde cresceu sem saber do seu passado. Em África, a família procurou-a durante cinco décadas. Até encontrá-la. Esta é história dos dias em que Isabel regressou à sua terra, percebeu quem era e nasceu de novo. Esta, na verdade, é a história de um milagre.
Regresso
Nos dias que anteciparam a partida para Luanda, Isabel era metade entusiasmo e metade angústia. A incerteza do que estava para vir deixava-a com o coração partido ao meio. Sabia que a vida lhe andava a preparar um grande espetáculo, mas não sabia se ia gostar do enredo. «Ela só chora», queixou-se um dia ao telefone João, o pai dos seus filhos. Tinham, afinal, passado 52 anos desde que saíra de África. E aquele podia ser o regresso com que sempre sonhara, sim, mas à medida que a data se aproximava cresciam-lhe receios no peito. Suspirava de vez em quando: «Então e se eles não forem boas pessoas?» Era sobretudo isso que a preocupava.
Ano e meio antes, as coisas tinham-se precipitado. Isabel, como dia a sua tia materna Eva Kimussangue, «é filha da história». Em 1965, um grupo de soldados portugueses que patrulhava o rio Zenza, em Angola, durante a Guerra Colonial, capturou-a no meio da mata. Decidiram levá-la para o quartel de Catete e ali passou oito meses, até a mulher de um oficial se encantar com a criança e querer trazê-la para Portugal. Tinha dois anos quando chegou a Lisboa e nada sabia da sua ascendência. Apesar dos documentos a identificarem como Isabel Manuel Jacinto, subsistiria para sempre a alcunha que os tropas lhe atribuíram: Isabel Batata Doce.
A viragem deu-se quando, em 2015, entrou no arquivo do Diário de Notícias à procura de um artigo sobre o seu batismo. A chegada da menina tinha feito honras de primeira página do jornal cinco décadas antes. E, dentro de dias, estava marcado um almoço de celebração de 50 anos de regresso a salvo do batalhão 525, o que a tinha resgatado. Esse encontro acabaria por ser o ponto de partida para uma investigação jornalística na Notícias Magazine que, não só lhe esclareceria muitas dúvidas, como acabaria por ter ecos em Angola. A partir da publicação de Um Milagre na Guerra, ou As Muitas Vidas de Isabel Batata Doce, ela sabia que o encontro com a família biológica era apenas uma questão de tempo.
Assim que as rodas do avião beijaram a pista do aeroporto Agostinho Neto, a mulher irrompeu num pranto de menina. Os passageiros retiravam malas, acotovelavam-se para descer as escadas, apressavam a corrida para os autocarros. E, sentada na sua cadeira, Isabel chorava, chorava, chorava, como se quisesse retirar dos ombros toda a carga dos anseios das últimas semanas. Chegara a Angola. E agora não havia mais nada a fazer, tudo o que acontecesse fazia parte de um plano que a vida lhe reservara e ela não conseguiria controlar. Nesse primeiro dia, visitou Luanda com a admiração do forasteiro que chega a um sítio novo. Desdobrava-se em perguntas sobre edifícios e hábitos, disparidades sociais, modos de vida. A determinada altura um homem passou por ela a cantar. Era um tipo bem vestido que descia uma rua do bairro de Alvalade com o semba a escapar-lhe da boca. «Meu Deus», notou Isabel, «eles são tão felizes.»
Tinha oito dias em Angola. Oito dias para reencontrar a família, visitar o passado, entender o que nunca tinha podido perceber. Os planos para a odisseia africana tinham sido traçados em Lisboa. «Vais ter de ir a Catete e ao Caxito para conheceres as tuas irmãs», dissera-lhe Joaquim Almeida, um primo que viajara para Portugal para fazer tratamentos médicos e a visitara no restaurante Batata Doce, o estabelecimento que Isabel e o marido abriram em 2012 no bairro da Madragoa. Joaquim tornara-se no barco que transportava carga de saudade entre Europa e África. Avisara toda a família de que a filha perdida estava viva. E que era tempo de preparar a sua chegada.
Foi na verdade por um acaso que a família de Isabel a descobriu em Portugal. Em 2015, a mulher recebeu um telefonema de um homem chamado Roberto, que lhe perguntou se ela era Isabel Manuel Jacinto, filha de Manuel Jacinto Diogo e Eva Manuel Adão. Disse-lhe que era seu sobrinho. Ela duvidou, mas os nomes batiam certo e a história que ele contava também. Roberto, saberia mais tarde, era genro de uma das suas irmãs e tinha vindo a Portugal passar umas semanas em trabalho. Antes de morrer, a sogra encarregou-o de procurar a criança que os portugueses levaram. Um dia, no Facebook, o homem deu com um restaurante chamado Batata Doce que servia comida angolana. E pensou: «Caramba, batata doce é coisa de Catete.» Abriu a página e deu com fotografias de uma mulher chamada Isabel Jacinto. Depois de encontrá-la, avisou Angola. Um ano depois, Joaquim viria para Lisboa e consigo traria o abraço que ela esperava há cinco décadas.
Numa manhã do final de março de 2017, depois de ter dormido a sua primeira noite em Angola, Isabel acordou e dirigiu-se à sala de pequenos almoços do hotel. Estava bem disposta porque sabia que nesse dia iria viajar para o Caxito, capital da província do Bengo, onde se iria encontrar com o lado paterno da família. Quando terminou a guerra colonial, uma boa parte dos Jacinto mudou-se para aquela cidade, 60 quilómetros a norte de Luanda. «Depois da guerra veio mais guerra», haveria de contar mais tarde Esperança, irmã mais velha de Isabel. «E nós já não aguentávamos mais morte. O campo era morte, era fome, era escuridão. No Caxito não havia tiros, podíamos dormir de noite, procurar comida. Então fomos.»
O pai de Isabel morrera em 2010, e isso ela já sabia porque o primo lhe tinha contado. Manuel Jacinto Diogo pereceu de cansaço e velhice no dia 13 de maio, data do aniversário de Isabel Batata Doce. Antes de partir, juntou filhos e sobrinhos junto ao leito e fez-lhes prometer que procurariam a sua filha perdida e a trariam a Angola. Mas essa história só chegaria aos ouvidos de Isabel mais tarde. Agora, diante de um prato de fruta fresca, ela sentenciava com nervosismo: «Quero perceber que tipo de homem ele era. E quero saber mais da minha mãe, que segundo me contaram morreu pouco depois de eu ser levada.» As mãos agitavam-se. «Eu sei tão pouco. Sei tão pouco.»
Isabel não fazia ideia que, na receção do hotel, estava um homem à sua espera. Yuri Benedito, seu sobrinho, tinha vindo a Luanda buscar a tia e levá-la para junto dos seus. Quando ela se levantou do pequeno almoço e atravessou o corredor até ao elevador, ele abriu os braços e falou numa voz tão potente quanto emocionada: «Foram 52 anos de tristezas e choros. Receba amorosamente e de forma muito expressiva a família que te aguarda há 52 anos. Seja bem vinda à sua mãe pátria, Isabel Manuel Jacinto Batata Doce. Seja bem vinda à sua mãe pátria.» Isabel, primeiro, estarreceu de emoção. Depois correu para Yuri e abraçou-o em lágrimas. Ele pegou-lhe ao colo, rodopiou-a incapaz de conter o choro, enquanto Isabel murmurava: «Obrigada, obrigada.» À volta, silêncio. Mesmo que tia e sobrinho não se conhecessem, mesmo que nunca se tivessem visto antes, naquele abraço cabia uma intimidade inabalável. Uma saudade de décadas.
O carro avançava agora pelo alcatrão, rumo ao reencontro. Duas horas de caminho, que a distância em África nem sempre é coisa linear. Primeiro foi a passagem pelos musseques, o casario pobre e empoleirado, gente a galgar as ruas, a vender tudo o que fosse preciso e o que não fosse preciso também. Depois o campo, pradarias verdes e os embondeiros que Isabel sonhava ver há anos. Conversando com Yuri no banco traseiro, e inquirindo-o do que estava para vir, a mulher tinha de se conformar com o mistério nas respostas, adivinhando que estava para chegar uma surpresa. Quando cruzou o rio Dande, pediu para sair do carro e mergulhar as mãos na água. Um pescador andava aos lúcios, mais abaixo um grupo de miúdos atirava-se à água numa alegria incontida e, nisto, ela desatou a chorar.
Haveria de acontecer muitas vezes, nesse dia e nos dias seguintes. Ao meter as mãos na terra vermelha, ao encontrar a água do rio ou simplesmente ao vislumbrar um vale que era todo beleza, Isabel comovia-se com o território que podia ter sido seu. «A minha terra é linda. É muito, muito, muito bonita. Cheira bem. Cheira a que alguém foi feliz ali.» O carro agora abandonava o alcatrão, percorria um caminho apertado por entre picadas e árvores, rumo à aldeia onde cinco décadas de incerteza finalmente se resolveriam. Ninguém falava, e a emoção era tamanha que o ar se tornava carregado. Uma última curva. Yuri indicou com a mão para virar numa ruela à esquerda e disse: «Pronto, é agora.»
Reencontro
Isabel permanece imóvel há largos minutos, deixou cair os braços e pôs os olhos no céu. À sua frente tem uma campa feita de cimento, com uma cruz tosca moldada no mesmo material. Ali jaz o corpo do seu pai, Manuel Jacinto Diogo. É o quinto dia em Angola e, para chegar ali, foi preciso percorrer hora e meia de caminho até Catete, mais uma hora numa estrada de terra vermelha até à aldeia de Quiminha, e depois uma boa meia hora de caminhada pelo meio do capim. O patriarca descansa sob os ramos de uma faia, árvore que o povo ali chama de cura-tudo. «Tive uma conversa com o meu pai», diria Batata Doce nessa noite. «Há coisas que ficaram entre nós, mas isto eu posso avançar: contei-lhe que tinha tido muita sorte por ir com os portugueses. E que era feliz. E que não lhe levava a mal por ele não me ter encontrado.»
Quiminha é um povoado desolado que os portugueses construíram no final dos anos 1960 para albergar os trabalhadores que construíam a barragem do rio Zenza, um quilómetro abaixo. Uma vintena de casas ladeia a única rua da aldeia, que desemboca num enorme embondeiro onde o povo pendura em bolsas de palhinha os seus telemóveis – é, afinal, o único sítio com rede em quilómetros. O tijolo das paredes está partido, as janelas há muito que perderam os vidros, portas são conceitos de materiais variáveis. Uma parte da família Jacinto mudou-se para o Caxito, outra para Viana, às portas de Luanda. Mas Manuel Jacinto Diogo permaneceria aqui até ao último dia. Tinha passado demasiados anos nas matas, o campo era-lhe absolutamente sanguíneo.
Os mortos da Quiminha descansam no alto do monte, no fim de um caminho de erva alta onde é preciso dar passos cuidadosos para não se ser surpreendido por cobras ou onças. Isabel cumpriu-o inteirinho de mão dada à irmã mais velha, Esperança. E esta, assim que chegou à campa paterna, desatou num prato que emudeceu toda a comitiva. «Pai, pai, trago-te a tua filha que os brancos levaram. Pai, pai, é a Isabel. Ela está viva, pai, ela vive.» Diante de um lamento tão profundo até as cigarras pareciam calar-se. Estava um calor inclemente, a paisagem mostrava-se esplendorosa, mas nenhuma dessas sensações conseguia sobrepor-se àquele grito. «Ai, pai, esta é a tua filha. A tua filha voltou.»
As mulheres tinham-se abraçado pela primeira vez há um par de dias, quando Isabel chegara com Yuri ao Caxito. Aquela receção, em boa verdade, revelar-se-ia um dos mais emocionantes momentos de toda a viagem. A família aguardava-a alinhada à porta da casa de Esperança, uma residência espaçosa no meio do musseque. Estavam ali umas boas 50 pessoas. Sobrinhos e sobrinhos-netos, primos e as três irmãs de Isabel ainda vivas: Esperança, Conceição e Florinda. No meio da rua os Jacinto tinham pendurado um cartaz com uma fotografia de Isabel e esta inscrição: «Seja bem vinda à sua terra, Isabel Jacinto Batata Doce. Aqui está a família que te espera há 50 anos.»
Ainda o jipe não tinha estacionado quando toda a gente começou a bater palmas. Isabel abriu a porta a tremer, um rio de lágrimas no rosto. Ela e Esperança correram uma para outra e lançaram-se num abraço tão apertado, tão apertado que parecia que queriam espremer a felicidade toda que tinham contida no peito. «Estás viva, minha irmã, estás viva.» Conceição e Florinda repetiram o gesto, e depois vieram cunhados e sobrinhos, tios e vizinhos. «Foi destes abraços que eu precisei durante muitos anos», haveria de dizer a mulher.
«Vamos entrar», anunciou Esperança, e o grupo moveu-se para o quintal da residência. E então, de dentro de casa, começou a ouvir-se uma guitarra. Mateus Benedito, irmão de Yuri e filho de Esperança, liderava o grupo de uma dezena de sobrinhos de Isabel. Tinham preparado uma música para o acolhimento. «O mesmo Deus que um dia fez com que te levassem foi o mesmo Deus que te trouxe. Bem vinda à sua terra, bem vinda à sua terra, bem vinda à sua terra natal.» O coro afinava-se e ia engrossando com as vozes da família inteira. Era um arrepio para toda a gente. Era uma alegria incalculável para Isabel.
Se esse encontro com a família paterna tinha erguido um monumento às emoções, a visita ao lado materno revelar-se-ia uma festa. Isabel sabia muito pouco sobre a sua mãe, interrogava-se como é que aquela mulher a tinha deixado partir sem contestação. E é certo que acabaria por esclarecer todas as dúvidas nos dias seguintes, mas, quando pela primeira vez conheceu as tias, não houve tempo para perguntas. Eva, Isabel e Florinda Kimussangue chegaram com atraso ao local de encontro e, assim que o carro as deixou junto à sobrinha, lançaram-se a ela como leões a uma palanca.
«Isabel uê, Isabel uê.» As três mulheres não tinham outra forma de expressar a sua felicidade. Dançavam à sua volta, davam saltos e mais saltos, tateavam-lhe braços, costas e pernas, como se quisessem certificar-se de que estava inteira. «Isabel uê. Isabel uê.» Uma multidão começou a juntar-se em torno de tanta alegria. Chegar à casa de Eva, no musseque do Monte da Areia, em Viana, era tarefa complicada e por isso tinham combinado ali, na esquina do embondeiro junto à penitenciária. É ponto central da cidade-satélite de Luanda, lugar de encontro de vendedores de água e frutos secos, praça de táxis improvisada. «O que foi, o que foi», perguntava o povo estupefacto. E quando Eva lhes contou que era uma sobrinha que tinha sido levada em bebé pelos portugueses e voltara passados 50 anos, a dança tornou-se no baile de toda a gente. As pessoas – mesmo as que não a conheciam – choravam, saudavam Isabel e pulavam em volta dela numa felicidade desmedida.
Havia mais gente à espera em casa de Eva. Havia um banquete de funje de mandioca com calulu de ramada de batata doce, comida de pobre transformada em delícia. Mas o que houve sempre foi música. Uma coluna debitava aos berros o semba que embalava o reencontro. A família cumprimentava-a em abraços ritmados, as tias não a largavam por um minuto sequer, mas sempre em passo de folia. A meio da tarde decidiram ir até casa de Branca, filha de Florinda, e a festa foi festa ao dobro. Numa roda, Isabel dançava, e toda a genética africana sobressaía no rodar de anca. «Isabel uê. Isabel uê.» Às tantas pegaram-na em braços, o corpo inteiro no ar. E ela ria, ria, ria. Ria de regozijo e ria de alívio. Estava em casa.
«Estou tão feliz por esta ser a minha gente, tão feliz», diria Isabel no fim da festa. «Tive uma família em Portugal que me educou e deu valores. Tive, por causa dos militares que cuidaram de mim, a oportunidade de escapar da guerra e a sorte de construir a minha vida longe da miséria. Mas hoje senti que estas eram as minhas raízes.» Gente humilde e pobre, sim, «mas tão boa e generosa.» Nesse dia decidiria com os seus botões: «Eu sou de Angola.» E resolver-se-ia a pedir a nacionalidade africana. Era como se, 52 anos depois, se tivesse encontrado a si mesmo.
Dias depois, Isabel haveria de iniciar uma demanda pelos seus registos de nascimento. Encontrou-os no arquivo notarial de Catete. Num livro cinzento estava uma folha escrita à mão em 1965, atestando de quem era filha e quando tinha nascido. Com isso, pôde tirar o bilhete de identidade e emocionou-se ao ver num cartão a vida resolvida. Mas ainda lhe faltava perceber a história. Na emoção e na alegria do reencontro dissipara as dúvidas que tinha trazido de Lisboa. A família era tudo o que tinha sonhado. A terra de que não se lembrava era inegavelmente a sua. Mas o passado continuava a ser um mistério.
Sabia o lado dos militares, de como a tinham encontrado e educado, de como a foram apoiando enquanto se fazia mulher em Portugal. Mas como é que o pai a tinha deixado ir? Porque é que a mãe a deixara no mato? «Não foi ela que te deixou cair, Isabel, fui eu», disse Eva Kimussangue, de cabeça baixa e olhar dorido. A revelação aconteceu quando visitavam a aldeia natal de Isabel, o Zenza do Golungo. Durante 52 anos, a mulher tinha carregado aquele peso no peito e podia finalmente aliviá-lo. Agora tornava-se claro porque é que, na primeira vez em que a vira, debaixo do embondeiro junto à penitenciária de Viana, lhe pedira para saltar para as suas cavalitas. Aconteceu no meio da dança. Com 71 anos, exigia à sobrinha de 54 que lhe subisse para as costas. «Daqui nunca devias ter caído», explicou-se. E começou a contar-lhe tudo.
Revisitação
A comuna de Cassoneca é uma das menos povoadas em toda a província do Bengo – e também uma das mais pobres de Angola. Tem 14 600 habitantes que vivem quase todos da agricultura e da pesca. Quando, em meados de 1961, os combates desceram da região dos Dembos, então na província do Kwanza Norte e hoje no Bengo, para os arredores de Catete, a zona tornou-se num dos epicentros da revolta africana. Hoje, em Calomboloca, capital da comuna, há uma escavadora estacionada junto ao edifício da administração local. Foi usada para abrir uma vala comum onde foram depositados os cadáveres de 500 quimbundos mortos pelas tropas portuguesas. «Contava-se nas matas que muitos homens tinham sido enterrados vivos», disse Eva Kimussangue diante daquele monumento sombrio.
O Zenza do Golungo é a aldeia mais isolada de toda a comuna. Para chegar ali é preciso cumprir um trilho de três horas por uma picada de terra vermelha, que na estação das chuvas fica intransitável e no tempo seco só se cumpre aos solavancos. À medida que se avança pelo terreno, as povoações tornam-se mais raras e o matagal mais denso. Este é caminho para a profundeza de Angola. Macacos saltam pelas árvores e há ali caçadores a tentar capturá-los com armadilhas. Numa aldeia, um animal morto é exposto no ramo de uma árvore, há-de ser fumado para que a carne possa ser consumida nas semanas seguintes. Há gente que quase não tem roupa e, como ali o capim ergue-se mais alto do que um homem, não é difícil perceber que aquele era território de emboscadas.
«Nasceste aqui», explicou Eva, «nestas matas». Isabel não respondeu, o isolamento e a aspereza da terra faziam-na imaginar o que a sua vida podia ter sido. «Eu tive muita sorte em ser levada para Portugal», constataria. «Não me consigo imaginar a viver num sítio assim. Nos musseques, onde há vida e música, eu admito que sim. Mas ali, no meio de toda aquela beleza de cortar a respiração, fiquei com uma sensação de vazio.» Era como se aquele território a anestesiasse, explicou. Esperava encontrar ali tudo, na terra da sua mãe. Mas agora não sentia nada.
O carro ficou estacionado junto à água e foi então que a sua tia esclareceu que ela tinha sido capturada ali à frente, num vale que se chamava Umbanda e que hoje está completamente inundado. «Nessa altura nós só víamos mata. Havia guerra e não podíamos ir para as aldeias. Não tínhamos roupa, comíamos o que apanhávamos.» Isabel tinha dois anos quando os tropas a levaram. E a sua mãe tinha duas filhas mais novas do que ela, eram três crianças de colo. «Então ela pediu à nossa mãe para ficar com a mais velha.» Em guerra, andavam sempre em fuga – tanta infância era sentença de morte. «Fui eu que fiquei responsável por tomar conta da minha sobrinha. Naquele dia, ia com ela às costas apanhar mandioca. Na mão levava a minha irmã mais nova, que também se chama Isabel. E foi aí que ouvi um barulho na mata.»
Em Angola é comum haver repetição de nomes entre pais e filhos, tios e sobrinhos, às vezes irmãos. Quando isso acontece, os quimbundos dizem que são xará um do outro. Então Isabel era xará da sua tia mais nova, tal como Eva o era em relação à irmã mais velha. Quando ouviu movimento nos matos, a mulher pensou que andavam javalis à horta e agarrou num pau para os espantar. «Mas nisto oiço um tiro.» Começa a correr em debandada e a pequena escorrega-lhe das costas. «Quando volto para trás, vejo os soldados muito perto. Então eles disparam outro tiro e gritam para eu não fugir que não me faziam mal.» Semanas antes, as tropas tinham morto duas mulheres no capim, como é que ela ia confiar neles? A voz de Eva começa a falhar, não há de tardar para desmanchar-se em lágrimas. «Eu queria voltar atrás, mas não podia. Não podia, Isabel, não podia.» A sobrinha faz-lhe festas e tranquiliza-a. «Foi a guerra.»
Quando a notícia chegou aos ouvidos de Manuel Jacinto Diogo e Eva Manuel Adão toda a gente pensava que a criança estava morta. O pai de Isabel, que nunca gostara da ideia de ter descendência longe de si, zangou-se com a mãe. «Ele disse que não queria mais ficar com a minha irmã, a culpa era dela e mandou-a de volta para os pais.» Então a mulher voltou com duas crianças pequenas e uma mágoa irreparável. Nos meses seguintes, mãe e filhas contraíram malária e, no espaço de dois anos as crianças morreram. Em 1968, convencida de que perdera toda a sua prole, Eva Manuel Adão não resistiu à febre. «Ela morreu de doença, sim, mas a doença foi o desgosto.»
O que os pais de Isabel não podiam saber é que, dias depois da filha ser capturada, o irmão de Manuel Jacinto Diogo, José, era apanhado pelas tropas portuguesas. Líder de um pelotão da resistência, resistira a sete tiros que ainda hoje são bem visíveis nas cicatrizes do corpo. «Quando saí do hospital e fui levado para o quartel de Catete. Assim que a miúda me vê, salta para o meu colo. Levantei a criança e disse: 'Esta é a Bela, é a filha do meu irmão.'»
José Jacinto Diogo tem hoje 88 anos e diz que esses dias de prisão no quartel foram alguns dos melhores da sua vida. «Comíamos três vezes por dia. A Isabel mais, porque os soldados gostavam muito dela.» Um dia, o comandante do batalhão 525 dirigiu-se a ele e disse que queria levar a criança para Portugal. Margarida, mulher do tenente-coronel Manoel Junqueira, tinha-se encantado com a miúda que passava o dia a comer batata doce, haveria de cuidá-la como sua. «Eu decidi que ela podia ir para Lisboa porque os pais não apareciam, estavam nas matas.» E combinou tudo com os militares, incluindo o registo notarial. «Se têm boa vontade, podem levá-la. Mas depois, no fim da guerra, têm de entregá-la outra vez.» O problema é que a guerra não terminou a tempo. Margarida Junqueira, a mãe adotiva, morreria em 1977, manuel Junqueira em 2001 e a Guerra Civil Angolana só chegaria ao fim em 2002, com a morte de Jonas Savimbi.
Com a independência de Angola, e a libertação de José Manuel Diogo, os dois lados da família de Isabel tiveram finalmente notícia de que a rapariga estava viva. E, ao longo das décadas seguintes, fariam todos os esforços por encontrá-la. «O meu irmão sempre disse que devíamos procurar a nossa filha perdida em Lisboa. Ele queria muito ir lá, sentia muita falta. Até ao dia em que morreu nunca esqueceu», diz o antigo guerrilheiro. Contactaram o administrador de Catete, Mendes de Carvalho, que conseguiu descobrir que a rapariga vivia na antiga metrópole mas nunca chegou à sua localização.
Eva Kimussangue escreveu uma carta à embaixada de Portugal em Angola, mas não obteve resposta. Em 1999, participou num programa de reencontros da televisão pública angolana, chamado Nação Coragem. «Eu cheguei lá e disse: Isabel Manuel Jacinto, filha de Manuel Jacinto Diogo e Eva Manuel Adão, eu sou a tua tia e estou à tua procura. Por favor dá uma resposta. Passou um ano. Nada.» A criança que os portugueses levaram para o quartel de Catete, convenceu-se Eva, estava perdida para sempre.
Houve um dia em que Isabel Batata Doce foi visitar as instalações militares onde cresceu, hoje nas mãos das Forças Armadas Angolanas. Quando assomou ao portão, o tenente Maurício dos Santos fechou o rosto, ninguém podia entrar ali sem a sua autorização. Quando ouviu a história de Isabel, no entanto, o homem emocionou-se e abraçou-a comovido. «Neste país, todos perdemos alguém que nunca mais encontrámos. É um milagre.»
Isabel percorreu o quartel em silêncio, como horas antes tinha passeado sem palavras pelo que um dia tinham sido as casas dos oficiais portugueses. Do tempo do colono restavam apenas escombros e um edifício cor de rosa. Raspando a tinta com uma faca, um militar descobriu as letras que indicavam a sala de comunicações, onde a criança tinha sido criada. Ela não se lembrava de nada, mas o coração estava num sobressalto. Era ali que o seu destino se tinha decidido. «Houve uma altura em que me deu vontade de correr por ali abaixo. Correr, correr, correr e só parar quando não tivesse mais ar no peito. Quando não tivesse mais nada dentro de mim.» De certa forma, era como se Isabel tivesse nascido de novo.
No último dia em Angola a família retomou a festa. Houve baile até de madruugada, houve discursos e leitura de poemas, uma música nova para a despedida: «Boa viagem, boa viagem, o povo que te viu a crescer te espera.» Naquela semana angolana, confessaria Isabel, a vida tinha-se resolvido toda. Cinco décadas de incerteza e o círculo finalmente fechado. «Eu sou tão feliz, meu Deus, sou tão feliz. Sinto que agora sou uma mulher completa. Tenho a minha família em Portugal e tenho uma família em Angola – uma família que sempre me procurou, que nunca se esqueceu de mim.» À chegada a Portugal sofreria de saudades, prometeria a si mesma que voltaria o mais brevemente possível, mas aqui e agora Isabel sabia tudo, sentia tudo, e a única coisa que conseguia fazer agora era dançar a sua vida. E dançou, dançou a noite toda. Dançou até não poder dançar mais
Texto Ricardo J. Rodrigues