terça-feira, 13 de junho de 2017

Chef Ljubomir Stanisic: o furacão visto à lupa





















Nas últimas semanas, Ljubomir Stanisic andou nas bocas do mundo como protagonista de «Pesadelo na Cozinha», o programa que bateu recordes de audiência e pôs toda a gente a pensar no que se passa nos bastidores dos restaurantes onde comemos habitualmente. Agora, chega de holofotes. O chef jugoslavo diz-se farto de fama, por isso recusa dar entrevistas. «Aquilo que me importa, aquilo de que quero realmente falar, é de comida.» Seja. Esta é a história de um jantar desafiante, do amor por uma horta e de uma conversa há muito adiada com um dos maiores críticos gastronómicos do país, Fernando Melo. Com menos gritaria, mas nem por isso menos espetacular.

«Vem aí o furacão.» É esta a frase que se ouve na cozinha do Six Senses Douro Valley, o luxuoso hotel em Lamego onde Ljubomir Stanisic, 38 anos, presta consultoria gastronómica há ano e meio. Uma semana por mês, sai de Lisboa (onde dirige os tachos dos seus dois restaurantes no Bairro Alto – o 100 Maneiras e o Bistro 100 Maneiras) e instala-se aqui, a criar pratos novos e a orientar uma equipa de 23 cozinheiros jovens, mas – nas suas palavras – talentosos.

«Sempre que ele chega, alguém avisa que o chef está na cozinha e pomo-nos todos em sentido», diz Luís Borlido, número dois de Ljubomir no Douro. «Ele é duro, sim, mas também é justo. Quando sente que tu dás, ele dá de volta. É por isso, e pela sua criatividade, que saí de um hotel onde era chef executivo e quis vir trabalhar com ele. O Ljubo é um inventor e vive para cozinhar.»

Depois de 13 semanas a liderar audiências televisivas com o programa Pesadelo na Cozinha, transmitido pela TVI aos domingos à noite, Ljubomir Stanisic está cansado de atenção mediática. A série terminou na semana passada [4 de junho], com o cozinheiro a angariar críticas e elogios depois de visitar vários restaurantes em colapso – e tentar torná-los funcionais. Há quem lhe agradeça não ter papas na língua e quem o acuse de prejudicar estabelecimentos, quem diga que é preciso mais de três dias para mudar uma casa e quem aponte que as suas medidas não são só válidas, são essenciais.

Ele encolhe os ombros: «Só farei uma segunda série se me pagarem um milhão de euros», diz meio a sério, meio a brincar. «Aquilo que me importa, aquilo de que realmente quero falar, é de cozinha.» Nas últimas semanas, choveram pedidos de entrevistas e Ljubo recusou-os todos. Só aceitou esta reportagem por dois motivos: é para falar de comida e é para fazê-lo com Fernando Melo, «o crítico gastronómico que mais respeito em Portugal.»

Então hoje há prova de fogo no Six Senses. O chef de origem jugoslava decidiu instalar uma chef’s table na cozinha e convidou Fernando Melo para um jantar especial de degustação. Ao todo, servirá 16 pratos, desde uma sandes de atum e foie gras em beterraba até um corneto de truta fumada, com passagem por um robalo com couve-flor e alperce. A estrela da noite será no entanto uma gelatina com ostra, berbigão e creme de alho, que fará Melo saltar de entusiasmo. «É isto que mostra todo o talento culinário do Ljubomir. Há camadas e camadas de sabor ali, há muito trabalho. É um prato que podia ser emoldurado.» O chef ouve e sorri enquanto prepara o próximo.

Numa chef’s table, há uma proximidade pouco habitual no mundo da restauração. O crítico e o cozinheiro, mais do que frente a frente, estão em convívio. Podem trocar impressões e avaliar reações em direto. Percebem-se melhor os pratos e percebem-se melhor os homens.

Em boa verdade, ambos se conhecem de ginjeira – não fossem vozes essenciais da alta-cozinha portuguesa. «Mas a verdade é que o Fernando Melo nunca escreveu uma crítica sobre o meu trabalho», diz o jugoslavo. O crítico anui, é verdade. «Temos sempre essa questão pendente. E no entanto é um de dois cozinheiros que me fizeram chorar.»

O outro foi Jordi Roca, chef pasteleiro do El Celler de Can Roca, apontado várias vezes como o melhor restaurante do mundo na lista divulgada anualmente pela Academia San Pellegrino, que um dia lhe serviu um pacote de doces com vinho do Porto em que tudo o que parecia não era. «Mas depois houve este jantar vínico que o Ljubo fez com vinho da Madeira em que conseguiu extrair o sabor perfeito no molho que apresentou com uns camarões. Era algo tão difícil e tão surpreendente que me emocionei e fui às lágrimas.»

A primeira vez que estiveram juntos, aliás, Melo percebeu imediatamente o potencial daquele rapaz. Ljubomir Stanisic tinha chegado há pouco tempo da antiga Jugoslávia e ainda mal falava português. Foi no início do milénio. Dois jovens chefs iam preparar um almoço na Quinta de Carvalhais, uma propriedade no Dão que é da Sogrape e onde se realizavam encontros vinícolas para especialistas. Atrás dos tachos estava ele e José Avillez, hoje à frente do Belcanto e de outros seis restaurantes e um de dois chefs portugueses com duas estrelas Michelin (o outro é Ricardo Costa, do The Yeatman e depois há mais três estrangeiros a trabalhar em Portugal com a mesma classificação – Dieter Koschina e Hans Neuner, ambos austríacos, e Benoît Sinthon, francês).

«Achávamos que íamos ter um fogão, mas acabámos a ter de ir buscar dois bicos de Camping Gaz para poder servir o menu» lembra Ljubo. E foi isso que impressionou Melo, a desenvoltura com que os rapazes resolveram o problema e serviram um almoço de grande nível. A parceria entre os dois parecia promissora.

Quando se fala de alta-gastronomia em Portugal é simplesmente injusto ignorar o passado comum que estes dois homens partilharam. Stanisic começou como copeiro na Fortaleza do Guincho, onde o português já dava cartas na cozinha. Em 2004, abriram ambos o 100 Maneiras em Cascais, mas a sociedade só haveria de durar oito meses. Tinham feitios incompatíveis e deixaram de se falar, mas Ljubo seguiu com o projeto mais quatro anos, até que a casa faliu. Foi então que se mudou para o Bairro Alto, onde viria a abrir dois novos restaurantes com o mesmo nome, em 2009 e 2010 – e esses sim, casos de sucesso.

«Às vezes sinto que foi a competição com Ljubomir que fez Avillez chegar tão longe», diz Fernando Melo quando a conversa vem à baila. «Stanisic tem um pensamento mais livre, enquanto Avillez é mais organizado.» E a verdade é que estão de pazes feitas, são chefs que se respeitam. «Nunca vi Ljubo imitar ninguém, o que ele faz é genuíno. Mas depois tem aquela caraterística de estar sempre a medir forças consigo próprio e não conseguir parar.»

É na verdade por isso que Fernando Melo nunca escreveu uma crítica sobre a cozinha de Ljubomir Stanisic. «Quando falo de um restaurante tenho de ser honesto com o leitor. E, apesar de ver no Ljubo uma das mais inteligentes filosofias gastronómicas em Portugal, acho que ele nunca mostrou a estabilidade que me permita garantir que alguém vai chegar à mesa e provar o que eu provei.»

Na alta-cozinha há a invenção, sim, mas depois há a durabilidade. E, aos olhos de um crítico, Stanisic é simplesmente demasiado inquieto. Assim que atinge um ponto de perfeição, vai procurar qualquer coisa nova, qualquer coisa diferente. O próprio aceita a ideia sem mágoa. «Eu não quero estrelas Michelin. Quero que as pessoas se divirtam no meu restaurante e vivam uma experiência intensa.» Se ele se entusiasma, então os outros também podem entusiasmar-se. É essa a droga de Ljubomir Stanisic, a de descobrir a novidade e depois a novidade a seguir. Seja um corte de carne, um produto exótico ou uma horta de aromáticas.

No final de um jantar de 16 pratos, ainda assim, Fernando Melo achou-se maravilhado. E, mesmo que tenha defendido durante horas a necessidade de consistência – e até repetição – numa cozinha, não resistiu ao repto de escrever finalmente sobre um jantar desafiante. Mesmo que tenha sido um acontecimento único e inimitável. É a primeira crítica, sim, e segue nestas páginas. Talvez seja verdade que isto foi apenas uma refeição. Mas então também é verdade que isto não foi apenas uma refeição. Esta noite houve um chef farto de holofotes a dizer que o importante é o que se passa nos pratos. E um crítico que se deixou levar na aventura. Porque é verdade: um jantar pode ser uma aventura. Este, pelo visto, foi.

Há buracos escavados no chão do jardim do Six Senses Douro Valley. É preciso perceber que tudo neste hotel obedece a um rigor imaculado, e aquelas escavações são um curioso manifesto de desordem. Foi Ljubomir que os mandou abrir. Dentro da terra fermentam vegetais durante semanas, até conseguir pontos perfeitos de maturação.

«Ao longo de muitos anos rejeitei tudo o que fosse vegetariano e agora ando entusiasmado em cozinhar sem me preocupar com a primazia das proteínas.» O furacão tem andado a colocar dentro da terra frascos com couves, e depois despeja-lhes gengibre, lima, quatro tipos diferentes de malaguetas. Uma colherada daquela fermentação é um soco no estômago. E, quando o dá a provar, parece mais contente que Rocky Balboa depois de vencer um combate de boxe por knock-out a Ivan Drago.

Este ano e meio do Douro tem-lhe servido para muitas experiências. Há peixes de rio e caça de grande qualidade, e anda a trabalhá-los afincadamente nos dois restaurantes do hotel: o Vale Abraão, com menu à carta, e o Barbecue, onde serve carnes biológicas. Mas o que o deixa realmente empolgado é a enorme horta e o pomar de citrinos que ocupam uma parte significativa dos terrenos do hotel. São áreas inteiras de tomilho e alfazema, alcachofras e amores-perfeitos. Isto para não falar de couves e batatas e cenouras e abóboras que produz ali mesmo.

«Os sabores são tão incríveis que decidi abrir no resort um terceiro restaurante, este totalmente vegetariano.» Há uma semana, no Six Senses Douro Valley, abriu então portas o Terroir, onde as experiências de alta-cozinha não passam pela carne nem pelo peixe. Nessa carta, há por exemplo um falso cheesecake: pão na base, um creme espesso de queijo de cabra e tomate em vez de compota. Serviu-o como se fosse um bolo, até acendeu uma vela e cantou os parabéns. E depois tirou o tapete a quem pensava que ia adoçar a boca.

Ljubo diz sentir nos vegetais o mesmo desafio que os tempos de guerra na Jugoslávia representaram para ele em termos alimentares. «Durante um ano, só tínhamos batatas para comer. E então vi como a minha mãe tentava inventar todos os dias algo de novo e diferente, e às vezes conseguia fazer coisas deliciosas usando apenas ervas.» Isso fê-lo ter até hoje um respeito tremendo pela gastronomia mais pobre, seja ela portuguesa ou jugoslava.

Dá o exemplo da comida alentejana. Pão, azeite e ervas serviram para criar uma diversidade de pratos verdadeiramente rica, e isso impressiona-o. No verão, gosta de viajar para as ilhas da ria Formosa e cozinhar com os pescadores. «Aprende-se muito com esses saberes antigos das pessoas que têm poucos recursos. E, no dia que deixar de aprender, deixarei de ser um bom cozinheiro.»

Quando terminou as gravações do programa Papa-Quilómetros, decidiu fazer-se à estrada e testar-se a si mesmo. Entregou um currículo falso para poder estagiar no Noma, em Copenhaga, que foi várias vezes cotado como melhor restaurante do mundo. Se tivesse apresentado as suas verdadeiras credenciais nunca o teriam deixado entrar – era simplesmente demasiado competente.

E mesmo nestes dias durienses, fez-se acompanhar por um chef mais jovem – Rodrigo Castelo, que lidera a cozinha da Taberna Ó Balcão, em Santarém, e que conheceu durante as filmagens de Pesadelo na Cozinha. Precisava de algumas carnes para usar num dos restaurantes que queria salvar e Rodrigo ajudou-o a encontrar esses produtos. «Acredito que ele vai ser um dos rostos de uma geração nova e brilhante e por isso quero tê-lo aqui comigo, a partilhar o processo criativo», diz Stanisic. «Gosto sempre de trazer alguém comigo para o Douro, passar o dia na cozinha, ter ideias novas e inventar.»

Ljubo tinha 18 anos quando chegou a Portugal. A guerra tinha estalado quatro anos antes na cidade natal, Sarajevo, e à chegada não imaginava tornar-se referência gastronómica. «Fui viver para a Reboleira [Amadora] e lembro-me de sentir o cheiro de bacalhau a cozer nas escadas do prédio e achar aquilo insuportável.» Mas começou a provar a comida e deixou-se levar. Um peixe estupendo, ervas e mais ervas, carne de qualidade.

«Estamos na fase mais interessante da cozinha portuguesa. Temos chefs que saíram do país, foram ver o que de melhor se faz no mundo e percebem que há nos nossos produtos a qualidade necessária para levar a nossa gastronomia a um patamar mais elevado.» Fala dos nossos produtos, da nossa gastronomia.

«Mas eu sinto-me português», diz o chef, que tem dois filhos portugueses, de mães portuguesas. «Quando Portugal jogou os play-offs de apuramento para o Mundial de 2010 e o Euro 2012 [contra a Bósnia e Herzegovina] torci sempre pela Seleção das Quinas.»

Volte-se umas horas atrás no tempo, à tarde que antecipou o jantar com Fernando Melo. Sobre o balcão da cozinha do Six Senses o chef dispôs uma série de camarões, lagostins e carabineiros. E há uns bons vinte minutos que está a olhar para aqueles crustáceos. Estamos no Douro e aqueles produtos vêm seguramente de longe, mas é muito provável que Ljubomir queira servir marisco porque está a preparar a abertura de um novo restaurante na Comporta.

É provavelmente desta inquietação que o crítico gastronómico fala – a de um homem que em terra pensa no mar. Mas quem olha para Ljubo agora, só vê serenidade. «Estava a estudar o produto, ver o que ele me dizia que queria que lhe fizesse.» Acabaria por servi-lo quase cru, sobre pedras quentes, deixando a cada comensal a opção de escolher o ponto de cozedura. E, assim que percebeu o que queria fazer, virou-se para o staff da cozinha e gritou: «Vamos ao trabalho, não há tempo a perder.» O furacão voltou.

Fernando Melo, o crítico

É um dos mais importantes críticos gastronómicos do país e ouvi-lo falar de texturas e sabores não é nada menos que uma lição de sabedoria. Escreve sobre comida e vinhos desde 1995, depois de ter passado quatro anos a publicar artigos sobre ciência e tecnologia. A paixão pelas aguardentes levá-lo-ia aos vinhos, e daí aos pratos. Professor universitário, doutorado em Física, coordenou as operações em terra da equipa que lançou para o espaço o Po Sat, o primeiro satélite português. Hoje, escreve crítica gastronómica e vinícola para as revistas Evasões (publicada à sexta-feira com o Diário de Notícias e o Jornal de Notícias) e Vinho – Grandes Escolhas, colaborando regularmente com a Notícias Magazine e a Epicur. Até agora, nunca tinha avaliado o trabalho de Ljubomir Stanisic.

E AGORA A CRÍTICA
NA MESA DO CHEF LJUBOMIR STANISIC, A RIBALTA É NOSSA
Por FERNANDO MELO

O à-vontade com que se movimenta, a liberdade que transmite e a forma única com que nos alimenta e ao mesmo tempo dá prazer, é espetáculo que só está ao alcance de quem priva no mesmo chão com o chef Stanisic.

Em primeiro lugar, gosta de comer, dá-lhe prazer, depois come a comida que faz, defende cada prato como a sua dama e explica. Surpreendeu-me o quanto enveredou pela sustentabilidade e o fervor militante com que aplica a lógica do produto inteiro, tão portuguesa e tão marítima.

Temos caldos, alguns de dupla fervura à maneira da bisque e uma concentração de sabor que só quem vive no limiar consegue de forma assim sistemática. Nas sementes a linhaça pontifica, consistências e envolvências diversas – de cabeça conto três – feita alternância crocante mas também a negociar lugares no pódio do sabor.

A competência central de Ljubo é a simplicidade que consegue mostrar em pratos da maior complexidade. O prato da noite foi a gelatina com ostra, berbigão e creme de alho, um cúmulo genial de trabalho, tempo e técnica. Com a colher explorava-se em profundidade e não havia uma investida igual à anterior. Brilhante.


Apresentou uma cavala – proteína que lhe é particularmente querida – curada, com sopa da mesma, de novo no registo simples que dá muito que falar. Emoção total. Gostei das pedras de xisto quentes para servir a cascaria, nuns casos para manter, noutros para afinar a gosto. A vénia para o robalo, couve-flor e alperce, a rendição para o leite queimado com beterraba. E os parabéns às harmonizações com vinho, inteiramente conseguidas, igualmente impossíveis.

Texto Ricardo J. Rodrigues

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