Alcinda Santos acordou com o monstro. Pouco passava da meia-noite e o vento assobiava bravo, ao fundo parecia-lhe ouvir o crepitar das árvores mas, que raio, o bosque estava tão longe. Levantou-se, foi à porta e quando a abriu lançou um grito: «Ai que morremos aqui todos, ai os meus ricos filhos.»
As labaredas tinham galgado o pinhal e engoliam livres as casas, a sua estava já tomada num canto. O marido e o filho despertaram com o pânico, tudo para a rua de pijama, descalço, tentar contornar o fogo enquanto ele deixasse.
Alcinda e o filho, Nuno, correram a bater às portas dos vizinhos, o monstro tinha chegado de mansinho e ninguém dera por ele.
Na aldeia de Ânsara, em pleno vale da Ventosa, vivem 19 pessoas, quase todos fugiram de carro. Ela teve um minuto para decidir se ia ou ficava. Ficaram oito braços para tanto fogo. Ela, o filho, dois vizinhos. Chamaram uma outra vez os bombeiros, ninguém podia acudir-lhes.
As condutas de água tinham rebentado, com os poços sedentos pela seca não havia nada para combater o incêndio. Um quilómetro abaixo do povo havia uma cisterna, então começaram a encher baldes e galgar a colina para tentar pelo menos salvar a sua casa. Quando amanheceu, ainda andavam naquilo, a carregar baldes e enxotar as chamas.
Foi só quando parou que a mulher de 60 anos percebeu tudo o que perdera. Chorou pelo sofrimento dos seus bichos, quase todos carbonizados no curral. E pela ingratidão do verão mais trabalhoso de que tinha memória, a concluir jornas ao calor, e que afinal não lhe valera de nada. Mas aquele minuto em que decidira ficar tinha-lhe salvo a casa. E, no fim de tudo, estava viva. «Foi Deus.»
O mesmo não se pode dizer da aldeia de Vila Nova, uns quilómetros abaixo, onde quatro pessoas perderam a vida para o mesmo incêndio. Ainda há um desaparecido. Os vizinhos bem tentaram salvá-los, mas o monstro era demasiado forte e enfrentá-lo ali era sentença de morte.
E fugiram, que mais podiam fazer? «Acha que abandonar a minha casa é fácil? É a minha vida toda naquelas paredes», diz Emília Marques, 73. «O fogo obriga-nos a tomar uma decisão muito rápida: ou fugimos e tentamos salvar a vida, ou arriscamos a morte para salvar o que demorámos uma vida inteira a construir.» Como num jogo de poker, arrisca-se – e às vezes perde-se.
Horas antes do anúncio das primeiras mortes, o secretário de Estado da Administração Interna, Jorge Gomes, pedia proatividade às comunidades rurais: «Não podemos ficar todos à espera que apareçam os bombeiros e os aviões para resolver o problema. Temos que proteger-nos.»
Rui Ladeira, presidente da câmara de Vouzela, gostaria que Jorge Gomes viesse dizer isso às gentes do vale da Ventosa: «A população do interior é envelhecida, não tem grandes condições de mobilidade nem formação para o combate aos incêndios.»
Muitas vezes, acrescenta, o fogo é tão rápido que nem sequer tem a decisão de ficar ou partir. «O que os bombeiros fizeram ontem à noite foi tentar garantir que as populações de Vouzela tivessem pelo menos uma opção.»
No terreno não estiveram mais de 50 homens para combater um fogo com três frentes e progressão rápida. «Às tantas percebemos que tínhamos dois vales com várias aldeias a ficar completamente rodeadas e tivemos de concentrar esforços ali para que pelo menos fosse possível sair», diz Joaquim Tavares, comandante dos bombeiros de Vouzela.
À Ventosa os carros já não podiam chegar, ficou entregue à sua sorte. Arderam casas em todas as aldeias, perderam-se vidas e das estradas a única paisagem que se alcança agora é um fim de mundo negro e fumegante.
Às vezes a decisão tem tempo para ser tomada. É isso que está a acontecer na aldeia de Paços de Ariz, também em Vouzela. Às duas da manhã apareceu a GNR, o incêndio estava bravo e não tardaria a chegar à povoação. Foi dada ordem de evacuação, quem ficasse fá-lo-ia por sua conta e risco.
«Metemos os mais velhos e os que não se podem mexer nos carros, toda a gente tem família aqui à volta», diz António Carvalho, 68 anos, nascido e criado na terra. Ele, a mulher e o sobrinho ficaram, mais uma mão cheia de vizinhos. Agora estão ali, a ver o mostro beijar-lhes os calcanhares.
Durante a noite, começaram a atar a urze em ramadas largas, caso falhe a água ainda podem dar vassourada aos pequenos focos. Ligaram mangueiras a todas as torneiras, disponíveis e viraram-nas para o ribeiro seco, de onde sabem que chegarão as chamas.
Os telhados molhados, panos encharcados na cabeça e máscaras a tapar narizes e bocas. «Se correr para o torto resta-nos fugir para os carros.» Estão todos apontados à estrada, para que ninguém precise de perder tempo em manobras.
«Quem fica para lutar e ganha nunca ganha verdadeiramente», diz Mabilde Santos, que não consegue parar de chorar. A sua casa é uma das mais isoladas que há na Ventosa – e esta noite o marido, sapador florestal, foi-lhe ensinando as táticas da guerra. «Dá-lhe mangueirada aqui, agora varre dali».
A habitação resistiu, apesar de ter ardido todo o piso térreo onde armazenavam lenha e das persianas das janelas terem derretido com o calor. Os animais foram-se, «e o carro só se salvou porque fui estacioná-lo no largo onde está a estátua de Fátima e Nossa Senhora quis protegê-la».
Mudaram-se para Vouzela há dois anos, depois de se conhecerem numa plantação de mirtilos em Bragança e se apaixonarem à primeira vista. São jovens, fartos da cidade, aquela casa no meio do pinhal era todo um projeto de vida.
«Lutámos tanto por isto e ontem à noite, quando o fogo chegou à escada, eu só pensava se valia a pena salvá-la.» Que paraíso sobra quando o sonho em volta ardeu? Ficar para lutar contra o monstro, mesmo que se ganhe a batalha, não significa vitória na guerra.
Texto de Ricardo J. Rodrigues
O teu trabalho encheu-me as medidas! Coerente, coeso e muito consistente. Parabéns e muito obrigada pela partilha
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