terça-feira, 30 de outubro de 2018

Afinal, os estrangeiros são a melhor coisa que nos podia ter acontecido

























"Quando vais ao Google e começas a pesquisar a cidade, o caso das Mães de Bragança aparece sempre nas primeiras páginas. E, quando lês aquilo, assustas-te", diz Rúbia Corrêa, 32, que é natural do Paraná e se mudou para Trás-os-Montes em 2015. É mulher e brasileira, como os alvos da fúria do manifesto de 2003. "Mas depois chegas e percebes que não há qualquer razão para ter medo. Antes pelo contrário, é uma cidade que está repleta de estrangeiros. E de estrangeiros bem acolhidos, como eu."

Os seus planos, aliás, são para ficar muitos anos. Rúbia veio do Brasil com um doutoramento no bolso para fazer investigação no Centro de Investigação da Montanha. "É uma das mais reputadas instituições mundiais na área agroalimentar. Tem uma equipa de topo a nível global e foi por isso que vim." Nunca, por mais duro que seja mudar de país, se arrependeu da sua decisão.

Quem hoje atravessa Bragança dificilmente reconhece a cidade que há 15 convocou para si atenções globais - sobretudo depois de a revista Time ter colocado na capa uma fotografia de uma prostituta brasileira no centro da cidade com a manchete"Europe's new Redlight District". Bragança, aos olhos do mundo, tinha-se tornado um novo centro de comércio sexual. E isso causou a fúria de um grupo de mulheres, que acusavam as brasileiras de lhes roubarem os maridos - as Mães de Bragança.

Há dois anos, aliás, o sociólogo José Machado Pais estudou este tema no livro Enredos Sexuais, Tradição e Mudança. "Aos olhos locais, o perigo vinha de fora", diria o investigador do Instituto de Ciências Sociais numa entrevista ao DN em 2016. "Os maridos traidores foram poupados, diria mesmo desculpabilizados. As imigrantes brasileiras apareceram então como o bode expiatório." Nos meses seguintes, uma série de rusgas policiais encerraria quase todas as casas de alterne e expulsaria muitas mulheres da cidade. A ameaça moral que vinha de fora era assim eliminada.

Hoje, no entanto, circulam pela cidade grupos de todas as etnias, as casas de uma terra cada vez mais envelhecida enchem-se de novos sotaques, criam-se negócios para receber toda esta gente que vem de fora. "Os estrangeiros são afinal a melhor coisa que nos podia ter acontecido e os brigantinos sabem-no hoje bem", diz Hernâni Dias, presidente da câmara municipal. "Estão a revelar-se um novo motor de desenvolvimento e estão a compensar muitas falhas causadas pelo despovoamento que a nossa região sofre." Em muitos casos, garante o autarca, passaram até a ser o orgulho da cidade.

A equipa com que Rúbia trabalha, por exemplo, estuda exaustivamente plantas e cogumelos na serra de Montesinho e encontra aplicações para a sua utilização na indústria alimentar - criando, nomeadamente, corantes e conservantes naturais. Isso vale que o Politécnico da cidade esteja entre os 50 mais reputados no mundo na área da biotecnologia alimentar, segundo o ranking de Xangai. "Todos os habitantes de Bragança sabem isso. Se alguém ousar olhar-me de alto a baixo, se alguém comentar com desdém a minha nacionalidade, eu arranjo maneira de explicar o que faço. E, nesse momento, troco qualquer possibilidade de discriminação por admiração." Mulher, brasileira - e uma honra para Bragança.

A revolução nos prados
O foco mediático de 2003 marcou a povoação transmontana. A maioria dos brigantinos acha ainda hoje que houve uma generalização injusta da população. "Eu sou de cá, vivia cá na cidade, e nunca me tinha apercebido de grande coisa naquela época", conta a cientista Isabel Ferreira, diretora do Centro de Investigação da Montanha. "Aquele manifesto foi assinado por duas ou três pessoas, mas subitamente parecia que éramos todos discriminatórios para os estrangeiros."

O presidente da câmara concorda. "Foi um exagero, Bragança não era diferente de outras cidades do país que tinham igualmente casas de alterne e com luzes vermelhas. O que o caso das Mães de Bragança realmente causou foi que hoje, ao contrário do resto do país, deixámos de ter estes estabelecimentos." De facto, quem percorre hoje os cenários que há 15 anos foram de polémica - casas de alterne e "cafés de cima", com porta para a rua mas instalados nos primeiros pisos dos edifícios - encontra hoje lojas renovadas e cafés onde se vendem muffins, crepes, cappuccini. Ou bares de estudantes onde se ouve música do mundo inteiro.

A revolução de Bragança começou em 2012, e um largo consenso entre as autoridades locais e os habitantes da cidade diz que a culpa é do Instituto Politécnico de Bragança (IPB). Não há hoje em Portugal nenhum estabelecimento de ensino superior mais internacional no país do que este. Um terço dos seus 7500 alunos são estrangeiros e provêm de 70 nacionalidades. As maiores comunidades estudantis são de Cabo Verde e do Brasil, mas aqui também estudam turcomanos e canadianos, etíopes e sul-coreanos, sauditas, colombianos, cazaques, argelinos, peruanos, guatemaltecos.

"Quando aqui cheguei, lembro-me de comentar muitas vezes que aqui não se via um único africano nas ruas", conta Lilian Barros, que juntamente com Isabel Ferreira foi nomeada uma das mais proeminentes cientistas agroalimentares do mundo pela agência de indexação Thomson Reuters. Nasceu no Porto, veio estudar para a cidade em 1998 e foi ficando. "Hoje, se pensarmos em escala, há muito mais gente de pele negra em Bragança do que no Porto."

Foi precisamente a falta de alunos que obrigou o IPB a ir procurá-los fora. "Quem não tem cão caça com gato", diz Orlando Rodrigues, presidente da instituição. "Quando começámos a perceber que a falta de crianças na região nos iria obrigar a abandonar cursos e reduzir a investigação, tivemos de criar uma alternativa que mantivesse o IPB relevante. Acho que a missão foi cumprida, tendo em conta que há cinco anos somos considerados pela Comissão Europeia o melhor politécnico do país."

Em junho, o Diário de Trás-os-Montes noticiava um número alarmante. De uma população escolar a frequentar o ensino básico e secundário de 7028 alunos em 2011, Bragança não tinha mais de 3944 no ano passado. Uma quebra de 44% em seis anos. "Quando nascemos, em 1983, os nossos alunos eram essencialmente da região. Hoje, um terço vem do distrito, outro terço da região Norte e quase outro é estrangeiro", explicam os vice-presidentes da instituição, Albano Alves e Anabela Martins.

Há três licenciaturas e cinco mestrados lecionados exclusivamente em inglês. As cantinas não servem vaca e porco nos mesmos dias, para que toda a gente possa manter os seus hábitos alimentares. A antiga casa dos caseiros da Quinta de Santa Apolónia, onde está hoje instalado o campus universitário, foi convertida em centro intercultural e acolhe orações de diferentes religiões. As bibliotecas estão equipadas com traduções dos principais livros.

Por ano, há cerca de 20 viagens não científicas da direção do politécnico ao estrangeiro. "Vamos em comissões de dois visitar feiras, escolas secundárias e liceus, universidades. Celebramos protocolos e convidamos os alunos para virem estudar para cá", explica Anabela Martins. "Estas iniciativas começaram em 2012, mas de há dois anos para cá começámos mesmo a colher os frutos e o número de alunos estrangeiros explodiu." A improvável Bragança, assim, tornou-se cosmopolita.

Isto é nacional, e é estrangeiro
Às quintas-feiras, depois dos treinos dos iniciados do clube local, sobe ao campo a equipa da Associação dos Estudantes Africanos de Bragança (AEAB). Às oito da noite, há uma série de pais que vêm buscar os filhos ao campo sintético do Politécnico e quase todos ficam ali uns minutos à conversa com os adolescentes de pele negra que esperam pela sua vez. "Bom jogo no domingo", atiram a Alex. E Alex responde, num sotaque cabo-verdiano mas já com expressões transmontanas: "Ainda ireis ver-me no Benfica."

São na maioria cabo-verdianos, mas também há brasileiros, guineenses, são-tomenses e um português. "Somos uma equipa da CPLP", diz na brincadeira o treinador Óscar Monteiro, que nasceu no Mindelo e chegou a Bragança em 2012 - foi um dos primeiros a vir estudar para o Politécnico. "E as pessoas aqui gostam da nossa equipa, vêm aos jogos e apoiam-nos. Os clubes da região, no fim do ano, vêm sempre cá buscar os melhores talentos. Por ano, sai sempre uma dúzia para os campeonatos nacionais."

A AEAB milita na primeira divisão distrital. Foram vice-campeões do campeonato em 2016 e no ano passado perderam a final da Taça. "O nosso principal problema é a adaptação ao clima", diz o treinador. "Quando está calor ninguém nos para e todos sonhamos com a subida. Mas depois vem o frio e malta começa a ficar com anginas, com gripe, com febre e vamos abaixo."

A estrela da companhia é Alex Soares, tem 22 anos, veio da ilha do Sal. Estuda música no Politécnico, e tem três paixões na vida: "a bola, a guitarra e o surf, mas esse fica difícil de praticar aqui." Bragança já é casa e o rapaz diz que a cidade sabe acolher, "tem morabeza". "Os transmontanos têm curiosidade pela tua cultura e também gostam de mostrar a deles. Ao fim de semana fazem cachupa aí num restaurante da cidade. E, quando eu convido os meus amigos portugueses, eles passado uns dias levam-me a comer a feijoada daqui." Para ele não há dúvidas: se puder, ficará cá a viver, mesmo que isso signifique reformar a prancha de surf.

Muitos ficam, e ajudam a explicar porque é que nos últimos anos Bragança é o distrito do país onde mais cresce a taxa de residentes estrangeiros, segundo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Os sinais dessa multiculturalidade veem-se um pouco por toda a parte, como nesta equipa de futebol. Mas aqui também se instalou a sede da Associação dos Estudantes e Pesquisadores Brasileiros em Portugal, que tem sede num antigo edifício do centro da cidade. Organizam aulas de capoeira e bailes de forró.

Os bombeiros recebem voluntários de Cabo Verde e do Brasil. Os artigos científicos que colocam agora a cidade no mundo são assinados por apelidos estranhos. A partir do próximo mês haverá aulas de mandarim na escola secundária, porque Qi Zheng, que aqui todos tratam por Júlia, as vai lecionar. Tem 28 anos, é tradutora e intérprete de português na ilha de Zuhai, perto de Macau. "Vim para aqui especializar-me, porque há muitas empresas chinesas a quererem investir no mundo lusófono e precisam de quem fale a língua."

Júlia era intérprete numa empresa automóvel com fábrica em Porto Alegre, no Brasil, agora decidiu dar aulas de português na universidade do lugar onde nasceu e o número de inscrições não para de aumentar. "Os negócios da eletricidade em Portugal, da construção civil em Angola ou da indústria automóvel no Brasil precisam de muita gente que fale a língua." Ela veio para Bragança para aprofundar os seus conhecimentos. "Mas, se ensinar chinês aqui, vai haver mais gente a poder conversar. E a fazer mais negócios."

O novo motor da cidade
A avenida Sá Carneiro é a mais cosmopolita de Bragança. Liga o centro histórico ao Politécnico e é daqui que se percebe toda a diversidade cultural que tomou conta da terra transmontana. Há restaurantes que oferecem menus internacionais, lojas de produtos informáticos que antes não teriam a mesma clientela, a semana passada abriu um McDonald"s que tem estado à pinha até às duas da manhã.

Mesmo no meio da estrada fica o Namasté Bragança, primeiro restaurante de comida nepalesa e indiana da cidade. Abriu portas em fevereiro e os donos tiveram de escalar os sabores em três categorias, para adaptá-los ao paladar local: doce, picante ou muito picante. 80% da clientela é portuguesa, o restante são universitários de países asiáticos e anglófonos, na maioria. Mas a verdadeira história que este sítio carrega é a de Saurabh Poudel, 20 anos.

O rapaz é aluno do terceiro ano de engenharia informática e rumou a Trás-os-Montes depois de viver um ano no bairro do Intendente, em Lisboa. "O meu pai trabalhava numa loja da capital e conseguiu trazer-me para aqui através do programa de reunificação familiar. E eu vim sozinho para Bragança. Quando cheguei aqui, apaixonei-me imediatamente pela cidade. E pensei: é aqui que a minha família tem de viver."

Saurabh tinha uma amiga da mesma idade, da mesma nacionalidade, que também viera para o Nordeste. "E se trouxéssemos para cá as nossas famílias e eles abrissem aqui um restaurante", propôs-lhe. Durante um ano, andaram os dois a convencer os pais a abrir aqui negócio. E, no início de 2018, a coisa deu-se. "Os nossos pais vieram cá, alugaram uma casa para vivermos e outra para fazermos o restaurante." As coisas têm corrido bem, às vezes há fila à porta para comer caril e pastéis de momo. "E agora os nossos irmãos mais novos entraram nas escolas de cá e isto será sempre casa. Sou do Nepal, sim, mas sou de Bragança."

Acolher milhares de estrangeiros significa inevitavelmente isto, um fomento do negócio. Na incubadora do IPB, por exemplo, nasceram duas empresas onde 99% da clientela é estrangeira - e não param de crescer. A mais antiga nasceu em 2012 com a chegada dos primeiros estudantes internacionais. Chama-se Risky Vector, tem uma dezena de funcionários e o que faz é alugar casas que estão ao abandono, recuperá-las e equipa-las para receber os alunos que vêm de outros países.

"Neste momento temos 90 apartamentos e mais de 400 inquilinos", diz Vítor Laranjeira, o proprietário. "Depois de anos em que Bragança se tornou uma cidade de casas vazias, hoje torna-se cada vez mais difícil arranjar onde acolher esta gente toda." Nenhuma das habitações é propriedade da empresa, são maioritariamente de emigrantes que estão fora, ou de famílias que viram os filhos partir para o litoral.

Um quarto individual custa 130 euros, um duplo fica a 100 por pessoa. A internet está incluída. "Tentamos sempre que um apartamento tenha o máximo de diversidade de nacionalidades possível, para que haja convívio." Numa casa da Avenida Sá Carneiro, por exemplo, uma polaca partilha casa com uma georgiana, um brasileiro e dois paquistaneses. E todos estão a adorar a experiência, principalmente à hora das refeições. "Tentamos mostrar as nossas culturas uns aos outros e não há melhor forma de fazer isso do que à mesa", explica Kazim Ahmad, do Paquistão. "Mesmo que as casas aqui sejam estranhas, hás de explicar-me porque é que vocês em Portugal fazem a cozinha num sítio e a sala noutro."

Em Bragança nasceu também a Student Traveller, uma agência de viagens especializada em estudantes internacionais. Começou a funcionar em 2013. No ano seguinte compraram o primeiro autocarro - hoje têm três. "A maior parte das viagens que organizamos são ao Algarve. Saímos quinta à noite e voltamos segunda antes das aulas começarem", explicam o português Dário Couto e a ucraniana Khrystyna Nykolaychuk, que todos os dias recebem no seu escritório em Bragança "miúdos que vieram para aqui estudar e nos tempos livres têm sede de se fazerem à estrada”.

Dez dias em Marrocos ou 23 a viajar pela Europa de autocarro são outros dos programas que oferecem, e para todos esgotam a lotação. "A ideia revelou-se um sucesso tão grande nos últimos anos que expandimo-nos para outras cidades universitárias", explica Dário. Agora a empresa, cuja sede continua a ser em Bragança, opera também a partir de Braga, Porto, Aveiro, Coimbra, Leiria e Lisboa. "E, desde o ano passado, internacionalizámos a companhia e estamos a sair de Salamanca, Valladolid, León, Corunha e Vigo. Por ano, vendemos dez mil viagens. Agora vamos contratar motoristas. Não vai ser difícil, o negócio da camionagem anda há anos em recessão."

Anna Kattel, 22, gostava mesmo era que houvesse uma viagem até à Estónia, mas a Student Travellers, por enquanto, só tem roteiros até à Polónia. "Seria espetacular, aparecer um dia em casa da minha família de surpresa", ri-se. É alta, loira, mais uma lufada de ar fresco na imagem de diversidade da cidade. Há dias contaram-lhe o caso do Manifesto das Mães de Bragança, e ela ficou muito espantada. "Bragança é muito pequena, mas ao mesmo tempo é tão acolhedora que me custa acreditar que um dia houve aqui estrangeiros que não foram bem recebidos."

Veio para Trás-os-Montes pela qualidade de ensino de Biotecnologia e até aqui chegar acreditava que o sítio onde podia ser mais feliz era dentro de um laboratório. "Mas depois começas a sair em Bragança e vês africanos que estão sempre a cantar, indianos que querem saber coisas da tua terra, brasileiros que fazem festa em toda a parte. É uma espécie de Babel minúscula. E sabes, eu sinto-me mesmo bem aqui." Isso explica muito bem o que aconteceu em 15 anos. É como se as postas de vitela, prato típico da região, pudessem vir agora acompanhadas de feijão preto.






Texto: Ricardo J. Rodrigues

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Bombeiro de Ferro






















Vinte e sete equipas, num total de 257 voluntários e profissionais, animaram, este fim de semana, a Ribeira do Porto, na 6.ª edição da prova Bombeiro de Ferro, que bateu o recorde de participantes.

A competição destinada aos bombeiros de todo o país, teve como vencedores os Sapadores do Porto, em masculinos, e os Bombeiros Voluntários de Freamunde, em femininos.

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

A tragédia da Venezuela está a tornar-se a riqueza de Estarreja















Crispim Rodrigues anda numa roda-viva. Todos os dias o seu telefone toca com notícia de que há mais gente a chegar no avião de Caracas. Na maioria dos casos, trazem uma mão à frente, outra atrás, mais uma mala com a vida que conseguiram encaixotar na fuga. "Que venham cá, então", anuncia para o outro lado da linha. "Um dia, dois no máximo. É esse em média o tempo que demoro a arranjar-lhes emprego."

Em teoria, Crispim é o responsável de relações exteriores da SEMA, uma associação que reúne três mil empresas de cinco concelhos do norte do distrito de Aveiro: Albergaria-a-Velha, Estarreja, Ovar, Murtosa e Sever do Vouga. Mas, desde que arrancou 2018, tornou-se uma espécie de salva-vidas para os que desaguam numa terra estranha. "Desde janeiro já arranjei trabalho a pelo menos 300 pessoas. Todos os dias chegam mais e ainda bem. Precisamos deles como de pão para a boca.”

Nos últimos meses, o regresso de portugueses emigrados na Venezuela e lusodescendentes tem crescido exponencialmente. "Quantificar um número rigoroso é complexo, a grande maioria tem passaporte português e não é sujeita a controlo à entrada", admite o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

As estimativas apontam para quatro mil pessoas na Madeira e 1500 no continente, mas o governo sabe que esses números pecam por escassez. "Só os registos de saúde madeirense contam já seis mil nomes. No continente, sabemos que há cada vez mais gente a fixar-se, sobretudo no distrito de Aveiro." A Estarreja, garante a câmara, chegaram neste ano 500 pessoas. Mas também aqui as contas são por baixo: desde o início do verão, o ritmo das chegadas tem triplicado.

Diamantino Sabina, presidente do município, não podia estar mais satisfeito: o retorno dos emigrantes está a ter um impacto tremendo na economia local, garante. "Chegam com uma enorme vontade de trabalhar e colmatam as necessidades de mão-de-obra do município. Além disso, como estão a fixar-se, potenciam a recuperação das casas desabitadas nas freguesias, e até as novas construções. Tudo isto está a mexer muito com a nossa terra."

Na Madeira, onde há o dobro dos regressos, não acontece o que se vê aqui. "Claro que também há muita gente competente no Funchal, mas nas ilhas vive-se muito do turismo, enquanto este é o coração industrial do país", diz José Valente, presidente da SEMA. "Ao longo dos anos de crise, a juventude emigrou e deixou-nos com um sério problema de falta de mão-de-obra, ao ponto de termos empresas que não se desenvolviam mais por falta de trabalhadores. Estes venezuelanos e luso-venezuelanos vêm fazer os trabalhos que os portugueses não querem. São um balão de oxigénio extraordinário para o motor industrial português. Estão a resolver uma falha."

Crispim ouve e concorda, ele anda a salvar vidas e essas vidas andam a salvar a sua terra. Tem 67 anos, foi aos 5 para Caracas e regressou passados 40. Nunca perdeu o sotaque. "Fui camarada do Hugo Chávez no exército", afiança, "fiz juramento de bandeira e amo tanto a Venezuela como Portugal." À porta da sua casa há um mastro onde todos os dias hasteia as bandeiras dos dois países.

Pertence à geração dos que partiram sem nada e é ver a história a repetir-se no sentido contrário que o faz passar horas a distribuir empregos, tratar de certidões, inscrever os que chegam no SEF, no consulado, no centro de saúde. Há amigos que lhe dizem que ele é o rio que se desviou do centro de Estarreja: mais cedo ou mais tarde, os caminhos dos que chegam acabam todos por desaguar nele. Encolhe os ombros, tem outra teoria. "Sou só o homem do meio. Estou entre as pessoas que começam a vida de novo e uma cidade que está a nascer outra vez."

Venezuelíssimo trabalho
Snack-Bar Kanayma. Café Venezuela. Caracas Grill. Edifício Maracay. Confeitaria Miranda. Charcutaria Bolívar. Quem percorre hoje as ruas de Estarreja encontra constantemente as marcas de uma fuga antiga. Nas décadas de 1950 e 1960, milhares de habitantes saíram desta região para a Venezuela. Se neste lado do Atlântico sobrava fome e ditadura, do outro havia a promessa de um novíssimo eldorado.

Estes estabelecimentos são dos primeiros que partiram, e depois, com os bolsos cheios, quiseram voltar. Os que agora regressam são os seus filhos, netos, às vezes bisnetos. Em regra não trazem grande coisa consigo além da amargura de uma saída forçada.

Vítor está a aprender a chamar-se Santos, porque até aqui sempre foi de los Santos. Aos 58 anos, a vida começou do início. A sua história é a de toda a gente, pais que emigraram para fugir do campo, ele com oportunidade de estudar e compor a vida. Fez-se designer gráfico, tinha uma empresa com quatro funcionários. "Vendi tudo há um ano, convencido de que daria para trazer a minha mulher e os meus filhos comigo. Mas tudo o que tínhamos só valia uma passagem de avião." Então veio ele, que já tinha passaporte português, tentar refazer a vida e ganhar dinheiro para puxar a família para Portugal. Chegou há três meses.

No dia em que chegou encontrou emprego na Prozinco, um dos maiores empregadores do concelho. Estarreja acolhe um dos maiores parques industriais do país - petroquímicas, fábricas de transformação, indústria de plásticos e farmacêutica. Esta empresa em particular tem 600 funcionários e trabalha em duas áreas essenciais, que exporta para todo o mundo: metalomecânica e recuperação de bilhas de gás.

Manuel Matos, dono da empresa, já deu emprego a uma vintena de luso-venezuelanos desde que o ano começou. "Mais viessem. Temos uma necessidade tremenda de mão-de-obra, sobretudo especializada. Estes trabalhadores têm um nível de educação superior à média e, mesmo quando esta não é esta a sua área, aprendem-na com facilidade.”

Vítor ouve-o e agradece a oportunidade, se não fosse aquele emprego, conseguia lá mandar dinheiro à família. Fá-lo pelo mercado negro, como todos, depositando dinheiro em contas de quem tem euros e bolívares - quase ninguém.

"Estás a viver onde?", pergunta o filho do dono, Paulo. "Numa pensão aqui a dois quilómetros, venho a pé. Mas sabe, estou muito agradecido por esta vida. Não tenha pena de mim, patrão, a minha família está viva e agora pode comer." Naquele momento, numa fábrica onde o trabalho é duro e os homens de ferro, toda a gente dá por si a agarrar as lágrimas. Paulo Matos limpa o rosto e atira: "Tenho ali uma bicicleta que ninguém usa. Leva-a tu, anda.”

A meia dúzia de quilómetros fica Salreu, que os habitantes locais gostam de dizer que é a terra mais venezuelana de Portugal e normalmente utilizam este argumento: o Funchal pode ter mais gente em quantidade mas, aqui, casa sim casa não é albergue latino. É também o lugar onde nasceu Manuel Augusto, 55, que aos 17 emigrou para a Venezuela e voltou no final do ano passado.

Trouxe consigo a mulher, Judith, e os dois filhos - João Manuel, 27, que já saiu de casa para viver com a namorada, e Manuel Augusto, 11, aluno exemplar. A mãe era professora de espanhol, o pai era dono de uma padaria. Agora ela trabalha com idosos na Santa Casa e ele é padeiro. "Nos últimos meses já não trabalhava porque tinha medo dos assaltos quando ia para a escola", diz ela. "Além disso, tínhamos de passar horas nas filas de racionamento se queríamos comida. A vida estava a tornar-se insuportável."

Manuel ainda estranha o pão, que aqui é feito sem manteiga nos tabuleiros. "Mas há pão, e eu lá já não o conseguia produzir porque deixámos de ter acesso a farinha." Ao longo dos últimos cinco anos, foram minguando o conforto. "Tínhamos uma fazenda em Santa Teresa, com 200 hectares e criação de gado. Primeiro vendemos os animais, depois a terra, no fim já só tínhamos uma parcela da casa. Foi quando decidimos sair."

Vieram para casa dos pais dele, para onde também tinham vindo parar primos que andavam emigrados, eram dez almas numa vivenda com dois quartos. Lá arranjaram retiro próprio num edifício há muito desabitado, dizem que hoje já não sobram casas por alugar na aldeia. "Tudo o que aqui vê - móveis, eletromésticos, até a cama - foi-nos oferecido pelas pessoas da aldeia", e Judith comove-se com a generosidade. "Sinto que nos querem cá, dizem sempre que nos querem cá, e eu às vezes até me sinto mal por ter tantas saudades de casa."

Manuel ouve a mulher e baixa o rosto, também ele tem saudades daquele calor todo. É por isso que naquela casa se cumpre todos os dias uma viagem a um país que, diz ele, já não existe. "Eu trabalho de noite, a minha mulher de dia, o miúdo está na escola. Só temos a hora de jantar para voltarmos à nossa Venezuela, e é isso que fazemos todos os dias. Aquele país que foi o meu sonho. A Venezuela foi isso, foi o meu sonho. E Portugal, pronto, foi a minha salvação." Judith olha para o marido e dá-lhe um beijo na testa. Depois, pega no tacho e traz o guisado para a mesa. Estão tristes. E estão felizes.

Como se fosse em casa
Sexta-feira é dia de arepas na Pastelaria Avenida, estabelecimento de Salreu que é ponto de encontro da comunidade luso-venezuelana. O café tem uma bandeira do país por cima do balcão, cerveja Polar dentro do frigorífico e sotaque caribenho nas mesas. Há dois meses começaram a fazer ali as tradicionais sanduíches venezuelanas, e hoje servem mais de 50 por dia, além de empanadas e tequeños, queijo enrolado em massa.

Fátima Tavares, dona do estabelecimento, replica quando se lhe pergunta se são iguais às de Caracas: "Sabe o que me dizem todos os que aqui estão a chegar? Que pelo menos em Portugal há farinha para fazer arepas."

O verão trouxe uma leva de gente dos trópicos e isso nota-se no comércio local. O Supermercado Couto, no centro de Estarreja, é hoje um ponto de peregrinação para quem mata no estômago as saudades da Venezuela. "Eu há já uns anos que introduzi aqui estes produtos. Agora que a procura aumentou o meu problema é arranjar quem me abasteça as necessidades", diz António Couto, dono da casa desde 1985.

É homem daquela geração que emigrou e voltou para montar negócio. "No início não havia onde arranjar nada venezuelano, mas de há dez anos para cá conseguimos importar muita coisa, sobretudo via Colômbia. As restrições do Chávez, primeiro, e do Maduro, depois, criam muitas dificuldades em irmos diretos à fonte."

Nada vende mais ali do que a harina arena, farinha de milho com que se cozinham as arepas. Mas também há folhas de bananeira congeladas para quem quiser fazer a hallaca, um refrigerante chamado maltín e uns canudos de chocolate chamados pirulín. Aqui não se vendem bananas, vendem-se plátanos. Não há rum, há ron. E se o rum tiver escrito no rótulo que se chama Pampero, no expositor está identificado como caballito frenado, que é como toda a gente o conhece na Venezuela.

Os portugueses da Venezuela costumam dizer que a vida económica da comunidade do país se dividia em duas categorias. Os madeirenses tornaram-se sobretudo donos de minimercados, supermercados e hipermercados. Às gentes do continente estava reservado o negócio da padaria. E elas florescem hoje na região, acrescentando cachitos à montra de salgados e florestas negras à dos doces.

"Às vezes sinto que esta terra começa a tornar-se um território misto, metade Venezuela, metade Portugal", diz Crispim Rodrigues, o angariador de empregos da comunidade. "E isso é muito bonito, é uma lição de que as coisas não precisam de ser branco ou preto, uma coisa ou outra." Para um minuto para pensar enquanto ajeita o bigode. "Sabe como é que se mata a dor de ter de fugir de um país?" - e deixa o silêncio cimentar a solenidade da sua teoria. "Construindo outro."

Hoje, na secundária de Estarreja, é dia da primeira aula de Português - língua não materna. Todos os miúdos sabiam de antemão que ali estaria a imprensa, e todos pediram autorização aos pais para dar cara e voz às suas questões. Num universo de 2877 alunos inscritos, 26 já foram encaminhados para aqui. São venezuelanos. "Mas sabemos que são mais, porque ainda falta despistar muita gente. E há os adultos, também abrimos uma turma à noite," diz Etelvina Soares, a professora.

Aquela aula não é só uma aula. No quadro todos escreveram aquilo de que sentiam mais falta, e se Jorge tinha saudades da praia de los Roques, Andrea ainda não sabia lidar com a falta que o seu amigo Simón lhe faz. Elizabeth sente falta do calor da sua gente, Fabíola da Laedy, o café onde se encontrava com os amigos.

Quando chegaram, o diretor da escola, Jorge Ventura, deu-lhes as boas vindas e disse-lhes que tinham direitos iguais a toda a gente. "Mas temos de ter muito cuidado para que não se fechem num gueto", diz a professora Etelvina, que pela primeira vez este ano vai ter de desenvolver um programa para misturar toda a gente. Mas é quando falam dos pais que se desfazem. "O meu pai era cirurgião, agora está numa fábrica", conta Andrea. Todos contam histórias idênticas. Numa fuga de infância, é preciso crescer depressa.


Texto Ricardo J. Rodrigues