"Quando vais ao Google e começas a pesquisar a cidade, o caso das Mães de Bragança aparece sempre nas primeiras páginas. E, quando lês aquilo, assustas-te", diz Rúbia Corrêa, 32, que é natural do Paraná e se mudou para Trás-os-Montes em 2015. É mulher e brasileira, como os alvos da fúria do manifesto de 2003. "Mas depois chegas e percebes que não há qualquer razão para ter medo. Antes pelo contrário, é uma cidade que está repleta de estrangeiros. E de estrangeiros bem acolhidos, como eu."
Os seus planos, aliás, são para ficar muitos anos. Rúbia veio do Brasil com um doutoramento no bolso para fazer investigação no Centro de Investigação da Montanha. "É uma das mais reputadas instituições mundiais na área agroalimentar. Tem uma equipa de topo a nível global e foi por isso que vim." Nunca, por mais duro que seja mudar de país, se arrependeu da sua decisão.
Quem hoje atravessa Bragança dificilmente reconhece a cidade que há 15 convocou para si atenções globais - sobretudo depois de a revista Time ter colocado na capa uma fotografia de uma prostituta brasileira no centro da cidade com a manchete"Europe's new Redlight District". Bragança, aos olhos do mundo, tinha-se tornado um novo centro de comércio sexual. E isso causou a fúria de um grupo de mulheres, que acusavam as brasileiras de lhes roubarem os maridos - as Mães de Bragança.
Há dois anos, aliás, o sociólogo José Machado Pais estudou este tema no livro Enredos Sexuais, Tradição e Mudança. "Aos olhos locais, o perigo vinha de fora", diria o investigador do Instituto de Ciências Sociais numa entrevista ao DN em 2016. "Os maridos traidores foram poupados, diria mesmo desculpabilizados. As imigrantes brasileiras apareceram então como o bode expiatório." Nos meses seguintes, uma série de rusgas policiais encerraria quase todas as casas de alterne e expulsaria muitas mulheres da cidade. A ameaça moral que vinha de fora era assim eliminada.
Hoje, no entanto, circulam pela cidade grupos de todas as etnias, as casas de uma terra cada vez mais envelhecida enchem-se de novos sotaques, criam-se negócios para receber toda esta gente que vem de fora. "Os estrangeiros são afinal a melhor coisa que nos podia ter acontecido e os brigantinos sabem-no hoje bem", diz Hernâni Dias, presidente da câmara municipal. "Estão a revelar-se um novo motor de desenvolvimento e estão a compensar muitas falhas causadas pelo despovoamento que a nossa região sofre." Em muitos casos, garante o autarca, passaram até a ser o orgulho da cidade.
A equipa com que Rúbia trabalha, por exemplo, estuda exaustivamente plantas e cogumelos na serra de Montesinho e encontra aplicações para a sua utilização na indústria alimentar - criando, nomeadamente, corantes e conservantes naturais. Isso vale que o Politécnico da cidade esteja entre os 50 mais reputados no mundo na área da biotecnologia alimentar, segundo o ranking de Xangai. "Todos os habitantes de Bragança sabem isso. Se alguém ousar olhar-me de alto a baixo, se alguém comentar com desdém a minha nacionalidade, eu arranjo maneira de explicar o que faço. E, nesse momento, troco qualquer possibilidade de discriminação por admiração." Mulher, brasileira - e uma honra para Bragança.
A revolução nos prados
O foco mediático de 2003 marcou a povoação transmontana. A maioria dos brigantinos acha ainda hoje que houve uma generalização injusta da população. "Eu sou de cá, vivia cá na cidade, e nunca me tinha apercebido de grande coisa naquela época", conta a cientista Isabel Ferreira, diretora do Centro de Investigação da Montanha. "Aquele manifesto foi assinado por duas ou três pessoas, mas subitamente parecia que éramos todos discriminatórios para os estrangeiros."
O presidente da câmara concorda. "Foi um exagero, Bragança não era diferente de outras cidades do país que tinham igualmente casas de alterne e com luzes vermelhas. O que o caso das Mães de Bragança realmente causou foi que hoje, ao contrário do resto do país, deixámos de ter estes estabelecimentos." De facto, quem percorre hoje os cenários que há 15 anos foram de polémica - casas de alterne e "cafés de cima", com porta para a rua mas instalados nos primeiros pisos dos edifícios - encontra hoje lojas renovadas e cafés onde se vendem muffins, crepes, cappuccini. Ou bares de estudantes onde se ouve música do mundo inteiro.
A revolução de Bragança começou em 2012, e um largo consenso entre as autoridades locais e os habitantes da cidade diz que a culpa é do Instituto Politécnico de Bragança (IPB). Não há hoje em Portugal nenhum estabelecimento de ensino superior mais internacional no país do que este. Um terço dos seus 7500 alunos são estrangeiros e provêm de 70 nacionalidades. As maiores comunidades estudantis são de Cabo Verde e do Brasil, mas aqui também estudam turcomanos e canadianos, etíopes e sul-coreanos, sauditas, colombianos, cazaques, argelinos, peruanos, guatemaltecos.
"Quando aqui cheguei, lembro-me de comentar muitas vezes que aqui não se via um único africano nas ruas", conta Lilian Barros, que juntamente com Isabel Ferreira foi nomeada uma das mais proeminentes cientistas agroalimentares do mundo pela agência de indexação Thomson Reuters. Nasceu no Porto, veio estudar para a cidade em 1998 e foi ficando. "Hoje, se pensarmos em escala, há muito mais gente de pele negra em Bragança do que no Porto."
Foi precisamente a falta de alunos que obrigou o IPB a ir procurá-los fora. "Quem não tem cão caça com gato", diz Orlando Rodrigues, presidente da instituição. "Quando começámos a perceber que a falta de crianças na região nos iria obrigar a abandonar cursos e reduzir a investigação, tivemos de criar uma alternativa que mantivesse o IPB relevante. Acho que a missão foi cumprida, tendo em conta que há cinco anos somos considerados pela Comissão Europeia o melhor politécnico do país."
Em junho, o Diário de Trás-os-Montes noticiava um número alarmante. De uma população escolar a frequentar o ensino básico e secundário de 7028 alunos em 2011, Bragança não tinha mais de 3944 no ano passado. Uma quebra de 44% em seis anos. "Quando nascemos, em 1983, os nossos alunos eram essencialmente da região. Hoje, um terço vem do distrito, outro terço da região Norte e quase outro é estrangeiro", explicam os vice-presidentes da instituição, Albano Alves e Anabela Martins.
Há três licenciaturas e cinco mestrados lecionados exclusivamente em inglês. As cantinas não servem vaca e porco nos mesmos dias, para que toda a gente possa manter os seus hábitos alimentares. A antiga casa dos caseiros da Quinta de Santa Apolónia, onde está hoje instalado o campus universitário, foi convertida em centro intercultural e acolhe orações de diferentes religiões. As bibliotecas estão equipadas com traduções dos principais livros.
Por ano, há cerca de 20 viagens não científicas da direção do politécnico ao estrangeiro. "Vamos em comissões de dois visitar feiras, escolas secundárias e liceus, universidades. Celebramos protocolos e convidamos os alunos para virem estudar para cá", explica Anabela Martins. "Estas iniciativas começaram em 2012, mas de há dois anos para cá começámos mesmo a colher os frutos e o número de alunos estrangeiros explodiu." A improvável Bragança, assim, tornou-se cosmopolita.
Isto é nacional, e é estrangeiro
Às quintas-feiras, depois dos treinos dos iniciados do clube local, sobe ao campo a equipa da Associação dos Estudantes Africanos de Bragança (AEAB). Às oito da noite, há uma série de pais que vêm buscar os filhos ao campo sintético do Politécnico e quase todos ficam ali uns minutos à conversa com os adolescentes de pele negra que esperam pela sua vez. "Bom jogo no domingo", atiram a Alex. E Alex responde, num sotaque cabo-verdiano mas já com expressões transmontanas: "Ainda ireis ver-me no Benfica."
São na maioria cabo-verdianos, mas também há brasileiros, guineenses, são-tomenses e um português. "Somos uma equipa da CPLP", diz na brincadeira o treinador Óscar Monteiro, que nasceu no Mindelo e chegou a Bragança em 2012 - foi um dos primeiros a vir estudar para o Politécnico. "E as pessoas aqui gostam da nossa equipa, vêm aos jogos e apoiam-nos. Os clubes da região, no fim do ano, vêm sempre cá buscar os melhores talentos. Por ano, sai sempre uma dúzia para os campeonatos nacionais."
A AEAB milita na primeira divisão distrital. Foram vice-campeões do campeonato em 2016 e no ano passado perderam a final da Taça. "O nosso principal problema é a adaptação ao clima", diz o treinador. "Quando está calor ninguém nos para e todos sonhamos com a subida. Mas depois vem o frio e malta começa a ficar com anginas, com gripe, com febre e vamos abaixo."
A estrela da companhia é Alex Soares, tem 22 anos, veio da ilha do Sal. Estuda música no Politécnico, e tem três paixões na vida: "a bola, a guitarra e o surf, mas esse fica difícil de praticar aqui." Bragança já é casa e o rapaz diz que a cidade sabe acolher, "tem morabeza". "Os transmontanos têm curiosidade pela tua cultura e também gostam de mostrar a deles. Ao fim de semana fazem cachupa aí num restaurante da cidade. E, quando eu convido os meus amigos portugueses, eles passado uns dias levam-me a comer a feijoada daqui." Para ele não há dúvidas: se puder, ficará cá a viver, mesmo que isso signifique reformar a prancha de surf.
Muitos ficam, e ajudam a explicar porque é que nos últimos anos Bragança é o distrito do país onde mais cresce a taxa de residentes estrangeiros, segundo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Os sinais dessa multiculturalidade veem-se um pouco por toda a parte, como nesta equipa de futebol. Mas aqui também se instalou a sede da Associação dos Estudantes e Pesquisadores Brasileiros em Portugal, que tem sede num antigo edifício do centro da cidade. Organizam aulas de capoeira e bailes de forró.
Os bombeiros recebem voluntários de Cabo Verde e do Brasil. Os artigos científicos que colocam agora a cidade no mundo são assinados por apelidos estranhos. A partir do próximo mês haverá aulas de mandarim na escola secundária, porque Qi Zheng, que aqui todos tratam por Júlia, as vai lecionar. Tem 28 anos, é tradutora e intérprete de português na ilha de Zuhai, perto de Macau. "Vim para aqui especializar-me, porque há muitas empresas chinesas a quererem investir no mundo lusófono e precisam de quem fale a língua."
Júlia era intérprete numa empresa automóvel com fábrica em Porto Alegre, no Brasil, agora decidiu dar aulas de português na universidade do lugar onde nasceu e o número de inscrições não para de aumentar. "Os negócios da eletricidade em Portugal, da construção civil em Angola ou da indústria automóvel no Brasil precisam de muita gente que fale a língua." Ela veio para Bragança para aprofundar os seus conhecimentos. "Mas, se ensinar chinês aqui, vai haver mais gente a poder conversar. E a fazer mais negócios."
O novo motor da cidade
A avenida Sá Carneiro é a mais cosmopolita de Bragança. Liga o centro histórico ao Politécnico e é daqui que se percebe toda a diversidade cultural que tomou conta da terra transmontana. Há restaurantes que oferecem menus internacionais, lojas de produtos informáticos que antes não teriam a mesma clientela, a semana passada abriu um McDonald"s que tem estado à pinha até às duas da manhã.
Mesmo no meio da estrada fica o Namasté Bragança, primeiro restaurante de comida nepalesa e indiana da cidade. Abriu portas em fevereiro e os donos tiveram de escalar os sabores em três categorias, para adaptá-los ao paladar local: doce, picante ou muito picante. 80% da clientela é portuguesa, o restante são universitários de países asiáticos e anglófonos, na maioria. Mas a verdadeira história que este sítio carrega é a de Saurabh Poudel, 20 anos.
O rapaz é aluno do terceiro ano de engenharia informática e rumou a Trás-os-Montes depois de viver um ano no bairro do Intendente, em Lisboa. "O meu pai trabalhava numa loja da capital e conseguiu trazer-me para aqui através do programa de reunificação familiar. E eu vim sozinho para Bragança. Quando cheguei aqui, apaixonei-me imediatamente pela cidade. E pensei: é aqui que a minha família tem de viver."
Saurabh tinha uma amiga da mesma idade, da mesma nacionalidade, que também viera para o Nordeste. "E se trouxéssemos para cá as nossas famílias e eles abrissem aqui um restaurante", propôs-lhe. Durante um ano, andaram os dois a convencer os pais a abrir aqui negócio. E, no início de 2018, a coisa deu-se. "Os nossos pais vieram cá, alugaram uma casa para vivermos e outra para fazermos o restaurante." As coisas têm corrido bem, às vezes há fila à porta para comer caril e pastéis de momo. "E agora os nossos irmãos mais novos entraram nas escolas de cá e isto será sempre casa. Sou do Nepal, sim, mas sou de Bragança."
Acolher milhares de estrangeiros significa inevitavelmente isto, um fomento do negócio. Na incubadora do IPB, por exemplo, nasceram duas empresas onde 99% da clientela é estrangeira - e não param de crescer. A mais antiga nasceu em 2012 com a chegada dos primeiros estudantes internacionais. Chama-se Risky Vector, tem uma dezena de funcionários e o que faz é alugar casas que estão ao abandono, recuperá-las e equipa-las para receber os alunos que vêm de outros países.
"Neste momento temos 90 apartamentos e mais de 400 inquilinos", diz Vítor Laranjeira, o proprietário. "Depois de anos em que Bragança se tornou uma cidade de casas vazias, hoje torna-se cada vez mais difícil arranjar onde acolher esta gente toda." Nenhuma das habitações é propriedade da empresa, são maioritariamente de emigrantes que estão fora, ou de famílias que viram os filhos partir para o litoral.
Um quarto individual custa 130 euros, um duplo fica a 100 por pessoa. A internet está incluída. "Tentamos sempre que um apartamento tenha o máximo de diversidade de nacionalidades possível, para que haja convívio." Numa casa da Avenida Sá Carneiro, por exemplo, uma polaca partilha casa com uma georgiana, um brasileiro e dois paquistaneses. E todos estão a adorar a experiência, principalmente à hora das refeições. "Tentamos mostrar as nossas culturas uns aos outros e não há melhor forma de fazer isso do que à mesa", explica Kazim Ahmad, do Paquistão. "Mesmo que as casas aqui sejam estranhas, hás de explicar-me porque é que vocês em Portugal fazem a cozinha num sítio e a sala noutro."
Em Bragança nasceu também a Student Traveller, uma agência de viagens especializada em estudantes internacionais. Começou a funcionar em 2013. No ano seguinte compraram o primeiro autocarro - hoje têm três. "A maior parte das viagens que organizamos são ao Algarve. Saímos quinta à noite e voltamos segunda antes das aulas começarem", explicam o português Dário Couto e a ucraniana Khrystyna Nykolaychuk, que todos os dias recebem no seu escritório em Bragança "miúdos que vieram para aqui estudar e nos tempos livres têm sede de se fazerem à estrada”.
Dez dias em Marrocos ou 23 a viajar pela Europa de autocarro são outros dos programas que oferecem, e para todos esgotam a lotação. "A ideia revelou-se um sucesso tão grande nos últimos anos que expandimo-nos para outras cidades universitárias", explica Dário. Agora a empresa, cuja sede continua a ser em Bragança, opera também a partir de Braga, Porto, Aveiro, Coimbra, Leiria e Lisboa. "E, desde o ano passado, internacionalizámos a companhia e estamos a sair de Salamanca, Valladolid, León, Corunha e Vigo. Por ano, vendemos dez mil viagens. Agora vamos contratar motoristas. Não vai ser difícil, o negócio da camionagem anda há anos em recessão."
Anna Kattel, 22, gostava mesmo era que houvesse uma viagem até à Estónia, mas a Student Travellers, por enquanto, só tem roteiros até à Polónia. "Seria espetacular, aparecer um dia em casa da minha família de surpresa", ri-se. É alta, loira, mais uma lufada de ar fresco na imagem de diversidade da cidade. Há dias contaram-lhe o caso do Manifesto das Mães de Bragança, e ela ficou muito espantada. "Bragança é muito pequena, mas ao mesmo tempo é tão acolhedora que me custa acreditar que um dia houve aqui estrangeiros que não foram bem recebidos."
Veio para Trás-os-Montes pela qualidade de ensino de Biotecnologia e até aqui chegar acreditava que o sítio onde podia ser mais feliz era dentro de um laboratório. "Mas depois começas a sair em Bragança e vês africanos que estão sempre a cantar, indianos que querem saber coisas da tua terra, brasileiros que fazem festa em toda a parte. É uma espécie de Babel minúscula. E sabes, eu sinto-me mesmo bem aqui." Isso explica muito bem o que aconteceu em 15 anos. É como se as postas de vitela, prato típico da região, pudessem vir agora acompanhadas de feijão preto.
Texto: Ricardo J. Rodrigues