quarta-feira, 3 de outubro de 2018

A tragédia da Venezuela está a tornar-se a riqueza de Estarreja















Crispim Rodrigues anda numa roda-viva. Todos os dias o seu telefone toca com notícia de que há mais gente a chegar no avião de Caracas. Na maioria dos casos, trazem uma mão à frente, outra atrás, mais uma mala com a vida que conseguiram encaixotar na fuga. "Que venham cá, então", anuncia para o outro lado da linha. "Um dia, dois no máximo. É esse em média o tempo que demoro a arranjar-lhes emprego."

Em teoria, Crispim é o responsável de relações exteriores da SEMA, uma associação que reúne três mil empresas de cinco concelhos do norte do distrito de Aveiro: Albergaria-a-Velha, Estarreja, Ovar, Murtosa e Sever do Vouga. Mas, desde que arrancou 2018, tornou-se uma espécie de salva-vidas para os que desaguam numa terra estranha. "Desde janeiro já arranjei trabalho a pelo menos 300 pessoas. Todos os dias chegam mais e ainda bem. Precisamos deles como de pão para a boca.”

Nos últimos meses, o regresso de portugueses emigrados na Venezuela e lusodescendentes tem crescido exponencialmente. "Quantificar um número rigoroso é complexo, a grande maioria tem passaporte português e não é sujeita a controlo à entrada", admite o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

As estimativas apontam para quatro mil pessoas na Madeira e 1500 no continente, mas o governo sabe que esses números pecam por escassez. "Só os registos de saúde madeirense contam já seis mil nomes. No continente, sabemos que há cada vez mais gente a fixar-se, sobretudo no distrito de Aveiro." A Estarreja, garante a câmara, chegaram neste ano 500 pessoas. Mas também aqui as contas são por baixo: desde o início do verão, o ritmo das chegadas tem triplicado.

Diamantino Sabina, presidente do município, não podia estar mais satisfeito: o retorno dos emigrantes está a ter um impacto tremendo na economia local, garante. "Chegam com uma enorme vontade de trabalhar e colmatam as necessidades de mão-de-obra do município. Além disso, como estão a fixar-se, potenciam a recuperação das casas desabitadas nas freguesias, e até as novas construções. Tudo isto está a mexer muito com a nossa terra."

Na Madeira, onde há o dobro dos regressos, não acontece o que se vê aqui. "Claro que também há muita gente competente no Funchal, mas nas ilhas vive-se muito do turismo, enquanto este é o coração industrial do país", diz José Valente, presidente da SEMA. "Ao longo dos anos de crise, a juventude emigrou e deixou-nos com um sério problema de falta de mão-de-obra, ao ponto de termos empresas que não se desenvolviam mais por falta de trabalhadores. Estes venezuelanos e luso-venezuelanos vêm fazer os trabalhos que os portugueses não querem. São um balão de oxigénio extraordinário para o motor industrial português. Estão a resolver uma falha."

Crispim ouve e concorda, ele anda a salvar vidas e essas vidas andam a salvar a sua terra. Tem 67 anos, foi aos 5 para Caracas e regressou passados 40. Nunca perdeu o sotaque. "Fui camarada do Hugo Chávez no exército", afiança, "fiz juramento de bandeira e amo tanto a Venezuela como Portugal." À porta da sua casa há um mastro onde todos os dias hasteia as bandeiras dos dois países.

Pertence à geração dos que partiram sem nada e é ver a história a repetir-se no sentido contrário que o faz passar horas a distribuir empregos, tratar de certidões, inscrever os que chegam no SEF, no consulado, no centro de saúde. Há amigos que lhe dizem que ele é o rio que se desviou do centro de Estarreja: mais cedo ou mais tarde, os caminhos dos que chegam acabam todos por desaguar nele. Encolhe os ombros, tem outra teoria. "Sou só o homem do meio. Estou entre as pessoas que começam a vida de novo e uma cidade que está a nascer outra vez."

Venezuelíssimo trabalho
Snack-Bar Kanayma. Café Venezuela. Caracas Grill. Edifício Maracay. Confeitaria Miranda. Charcutaria Bolívar. Quem percorre hoje as ruas de Estarreja encontra constantemente as marcas de uma fuga antiga. Nas décadas de 1950 e 1960, milhares de habitantes saíram desta região para a Venezuela. Se neste lado do Atlântico sobrava fome e ditadura, do outro havia a promessa de um novíssimo eldorado.

Estes estabelecimentos são dos primeiros que partiram, e depois, com os bolsos cheios, quiseram voltar. Os que agora regressam são os seus filhos, netos, às vezes bisnetos. Em regra não trazem grande coisa consigo além da amargura de uma saída forçada.

Vítor está a aprender a chamar-se Santos, porque até aqui sempre foi de los Santos. Aos 58 anos, a vida começou do início. A sua história é a de toda a gente, pais que emigraram para fugir do campo, ele com oportunidade de estudar e compor a vida. Fez-se designer gráfico, tinha uma empresa com quatro funcionários. "Vendi tudo há um ano, convencido de que daria para trazer a minha mulher e os meus filhos comigo. Mas tudo o que tínhamos só valia uma passagem de avião." Então veio ele, que já tinha passaporte português, tentar refazer a vida e ganhar dinheiro para puxar a família para Portugal. Chegou há três meses.

No dia em que chegou encontrou emprego na Prozinco, um dos maiores empregadores do concelho. Estarreja acolhe um dos maiores parques industriais do país - petroquímicas, fábricas de transformação, indústria de plásticos e farmacêutica. Esta empresa em particular tem 600 funcionários e trabalha em duas áreas essenciais, que exporta para todo o mundo: metalomecânica e recuperação de bilhas de gás.

Manuel Matos, dono da empresa, já deu emprego a uma vintena de luso-venezuelanos desde que o ano começou. "Mais viessem. Temos uma necessidade tremenda de mão-de-obra, sobretudo especializada. Estes trabalhadores têm um nível de educação superior à média e, mesmo quando esta não é esta a sua área, aprendem-na com facilidade.”

Vítor ouve-o e agradece a oportunidade, se não fosse aquele emprego, conseguia lá mandar dinheiro à família. Fá-lo pelo mercado negro, como todos, depositando dinheiro em contas de quem tem euros e bolívares - quase ninguém.

"Estás a viver onde?", pergunta o filho do dono, Paulo. "Numa pensão aqui a dois quilómetros, venho a pé. Mas sabe, estou muito agradecido por esta vida. Não tenha pena de mim, patrão, a minha família está viva e agora pode comer." Naquele momento, numa fábrica onde o trabalho é duro e os homens de ferro, toda a gente dá por si a agarrar as lágrimas. Paulo Matos limpa o rosto e atira: "Tenho ali uma bicicleta que ninguém usa. Leva-a tu, anda.”

A meia dúzia de quilómetros fica Salreu, que os habitantes locais gostam de dizer que é a terra mais venezuelana de Portugal e normalmente utilizam este argumento: o Funchal pode ter mais gente em quantidade mas, aqui, casa sim casa não é albergue latino. É também o lugar onde nasceu Manuel Augusto, 55, que aos 17 emigrou para a Venezuela e voltou no final do ano passado.

Trouxe consigo a mulher, Judith, e os dois filhos - João Manuel, 27, que já saiu de casa para viver com a namorada, e Manuel Augusto, 11, aluno exemplar. A mãe era professora de espanhol, o pai era dono de uma padaria. Agora ela trabalha com idosos na Santa Casa e ele é padeiro. "Nos últimos meses já não trabalhava porque tinha medo dos assaltos quando ia para a escola", diz ela. "Além disso, tínhamos de passar horas nas filas de racionamento se queríamos comida. A vida estava a tornar-se insuportável."

Manuel ainda estranha o pão, que aqui é feito sem manteiga nos tabuleiros. "Mas há pão, e eu lá já não o conseguia produzir porque deixámos de ter acesso a farinha." Ao longo dos últimos cinco anos, foram minguando o conforto. "Tínhamos uma fazenda em Santa Teresa, com 200 hectares e criação de gado. Primeiro vendemos os animais, depois a terra, no fim já só tínhamos uma parcela da casa. Foi quando decidimos sair."

Vieram para casa dos pais dele, para onde também tinham vindo parar primos que andavam emigrados, eram dez almas numa vivenda com dois quartos. Lá arranjaram retiro próprio num edifício há muito desabitado, dizem que hoje já não sobram casas por alugar na aldeia. "Tudo o que aqui vê - móveis, eletromésticos, até a cama - foi-nos oferecido pelas pessoas da aldeia", e Judith comove-se com a generosidade. "Sinto que nos querem cá, dizem sempre que nos querem cá, e eu às vezes até me sinto mal por ter tantas saudades de casa."

Manuel ouve a mulher e baixa o rosto, também ele tem saudades daquele calor todo. É por isso que naquela casa se cumpre todos os dias uma viagem a um país que, diz ele, já não existe. "Eu trabalho de noite, a minha mulher de dia, o miúdo está na escola. Só temos a hora de jantar para voltarmos à nossa Venezuela, e é isso que fazemos todos os dias. Aquele país que foi o meu sonho. A Venezuela foi isso, foi o meu sonho. E Portugal, pronto, foi a minha salvação." Judith olha para o marido e dá-lhe um beijo na testa. Depois, pega no tacho e traz o guisado para a mesa. Estão tristes. E estão felizes.

Como se fosse em casa
Sexta-feira é dia de arepas na Pastelaria Avenida, estabelecimento de Salreu que é ponto de encontro da comunidade luso-venezuelana. O café tem uma bandeira do país por cima do balcão, cerveja Polar dentro do frigorífico e sotaque caribenho nas mesas. Há dois meses começaram a fazer ali as tradicionais sanduíches venezuelanas, e hoje servem mais de 50 por dia, além de empanadas e tequeños, queijo enrolado em massa.

Fátima Tavares, dona do estabelecimento, replica quando se lhe pergunta se são iguais às de Caracas: "Sabe o que me dizem todos os que aqui estão a chegar? Que pelo menos em Portugal há farinha para fazer arepas."

O verão trouxe uma leva de gente dos trópicos e isso nota-se no comércio local. O Supermercado Couto, no centro de Estarreja, é hoje um ponto de peregrinação para quem mata no estômago as saudades da Venezuela. "Eu há já uns anos que introduzi aqui estes produtos. Agora que a procura aumentou o meu problema é arranjar quem me abasteça as necessidades", diz António Couto, dono da casa desde 1985.

É homem daquela geração que emigrou e voltou para montar negócio. "No início não havia onde arranjar nada venezuelano, mas de há dez anos para cá conseguimos importar muita coisa, sobretudo via Colômbia. As restrições do Chávez, primeiro, e do Maduro, depois, criam muitas dificuldades em irmos diretos à fonte."

Nada vende mais ali do que a harina arena, farinha de milho com que se cozinham as arepas. Mas também há folhas de bananeira congeladas para quem quiser fazer a hallaca, um refrigerante chamado maltín e uns canudos de chocolate chamados pirulín. Aqui não se vendem bananas, vendem-se plátanos. Não há rum, há ron. E se o rum tiver escrito no rótulo que se chama Pampero, no expositor está identificado como caballito frenado, que é como toda a gente o conhece na Venezuela.

Os portugueses da Venezuela costumam dizer que a vida económica da comunidade do país se dividia em duas categorias. Os madeirenses tornaram-se sobretudo donos de minimercados, supermercados e hipermercados. Às gentes do continente estava reservado o negócio da padaria. E elas florescem hoje na região, acrescentando cachitos à montra de salgados e florestas negras à dos doces.

"Às vezes sinto que esta terra começa a tornar-se um território misto, metade Venezuela, metade Portugal", diz Crispim Rodrigues, o angariador de empregos da comunidade. "E isso é muito bonito, é uma lição de que as coisas não precisam de ser branco ou preto, uma coisa ou outra." Para um minuto para pensar enquanto ajeita o bigode. "Sabe como é que se mata a dor de ter de fugir de um país?" - e deixa o silêncio cimentar a solenidade da sua teoria. "Construindo outro."

Hoje, na secundária de Estarreja, é dia da primeira aula de Português - língua não materna. Todos os miúdos sabiam de antemão que ali estaria a imprensa, e todos pediram autorização aos pais para dar cara e voz às suas questões. Num universo de 2877 alunos inscritos, 26 já foram encaminhados para aqui. São venezuelanos. "Mas sabemos que são mais, porque ainda falta despistar muita gente. E há os adultos, também abrimos uma turma à noite," diz Etelvina Soares, a professora.

Aquela aula não é só uma aula. No quadro todos escreveram aquilo de que sentiam mais falta, e se Jorge tinha saudades da praia de los Roques, Andrea ainda não sabia lidar com a falta que o seu amigo Simón lhe faz. Elizabeth sente falta do calor da sua gente, Fabíola da Laedy, o café onde se encontrava com os amigos.

Quando chegaram, o diretor da escola, Jorge Ventura, deu-lhes as boas vindas e disse-lhes que tinham direitos iguais a toda a gente. "Mas temos de ter muito cuidado para que não se fechem num gueto", diz a professora Etelvina, que pela primeira vez este ano vai ter de desenvolver um programa para misturar toda a gente. Mas é quando falam dos pais que se desfazem. "O meu pai era cirurgião, agora está numa fábrica", conta Andrea. Todos contam histórias idênticas. Numa fuga de infância, é preciso crescer depressa.


Texto Ricardo J. Rodrigues

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