domingo, 11 de novembro de 2018

Terra dos índios






















A aldeia de Vale Domingos fica a três quilómetros de Águeda, ligada por uma estrada cujos sinais de trânsito eram constantemente vandalizados. A escola fechou, não por falta de alunos mas devido ao insucesso escolar. As casas estão concentradas junto à rua principal, com um bairro social e dois de ciganos nos extremos. No meio, um terreno que até há oito anos tinha prefabricados abandonados e mato, esconderijo para o produto de roubos. Os de fora preferiam não se aproximar, chamavam-lhe a "terra dos índios". Alguns de dentro faziam jus à fama. Ora acontece que a autarquia queria ali construir mais um bairro social e a população, discordando, em vez de protestar, apresentou ideias. Ganhou um milhão de euros do orçamento participativo e agora tem o maior parque de magnólias da Península Ibérica. Está ainda empenhada em tornar-se conhecida pelos doces, com a Feira das Lambarices.

Na origem do projeto está Ricardo Pereira, um empresário local que cresceu com os ciganos sem perceber que havia discriminação racial. Também não a compreendeu em adulto, tão-pouco aos estigmas que envolviam a terra. Acreditou que as coisas podiam ser diferentes - e começou a fazer por isso em 2010. Organizou um jantar de homens de todas as idades, raças, credos e partidos. Compareceram cem, praticamente a aldeia toda. Falaram dos problemas e de como os poderiam resolver. "Tínhamos um terreno abandonado, onde havia a ideia de fazer um bairro social. Sugeri que apresentássemos projetos para o espaço.”

Percorre-se a aldeia e vê-se gente desocupada, pobreza. Vende-se cigarros à unidade, a 50 cêntimos cada. Muitas pessoas a receber o rendimento social de inserção (RSI). Não há números oficiais por localidade, mas numa vila com 350 habitantes, deverão trabalhar 10%, se descontarmos ainda os reformados, as crianças e os adolescentes. O Instituto da Segurança Social indica 195 beneficiários do RSI na freguesia de Águeda e Borralha, a que pertence Vale Domingos. Cerca de 60 famílias vivem nos bairros mais desfavorecidos: 15 no bairro da Ribeira, 11 no bairro do Gravanço e 30 no bairro da Amizade.

O jantar de homens
No tal jantar só para homens choveram ideias para o baldio com prefabricados abandonados do Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais, ali colocados em 1981 para acolher quem ia chegando das ex-colónias. Apresentaram a proposta a Paulo Seara, então presidente da Junta de Freguesia. "A ideia é boa, mas com que meios?" A mesma opinião teve Gil Nadais, ex-presidente da Câmara Municipal de Águeda (CMA), que disponibilizou os 1,1 hectares e entrou com 25 mil euros para começar a dar vida ao projeto. Mas era pouco para o que se ambicionava. Então fizeram um acordo. A população dava a mão-de-obra, os autarcas os equipamentos e os materiais. Começaram por limpar tudo, aproveitaram blocos e pedras do centro de Águeda, que estava em obras. Realizaram espetáculos para angariar fundos, com artistas nacionais, alguns de etnia cigana - foram três anos consecutivos de Concerto no Park.

E assim começou a normalizar-se o convívio entre todos. Ricardo e outros voluntários reuniram-se com a GNR para fazer a segurança do evento; a guarda respondeu que, dadas as características de Vale Domingos, o melhor era contactarem o Corpo de Intervenção da PSP, que considerou não se justificar. Fizeram a festa sem segurança e não houve registo de problemas nem de roubos. Fizeram dez mil euros em três anos.

"Eram muitos os problemas, a intervenção da junta e da câmara era praticamente nula, os jovens eram detidos. Nada disso acontece há três anos. Antes, os que procuravam emprego não o conseguiam por aqui morarem. Continuamos a ter problemas, mas aumentou a autoestima. As crianças já vão à escola, as coisas não aparecem estragadas - perceberam que se o fizerem, alguém vai ter trabalho", diz Ricardo.

A GNR confirma: deixou de haver detenções por criminalidade juvenil. Houve uma única por violência doméstica em 2017.

Feliz por aprender
A psicóloga Rosália Coelho atesta as melhorias das crianças de Vale Domingos, é também voluntária na aldeia. Pertence ao quadro do agrupamento de escolas Fernando Caldeira, de Águeda, que no ano letivo 2016-2017 iniciou o projeto Velhas Margens, Novas Pontes. É dirigido à comunidade cigana, 5% da população escolar de todo o concelho. "Estão a acontecer coisas muito boas, por um lado os projetos locais que desmistificam a ideia negativa que se tinha de Vale Domingos; por outro, o do agrupamento. Foi uma feliz coincidência", diz a técnica, ali colocada há nove anos. Diz aos alunos, e pede que repitam: "Estou feliz porque estou na escola a aprender, e se aprendo é para mim, independentemente de ser rico ou pobre!"

De início, o objetivo era conseguir que as crianças ciganas fossem à escola, agora querem melhorar os resultados. "Temos crianças que gostam da escola, sentem que é delas e isso é extraordinário." O projeto envolveu 23 meninos de etnia cigana dos 1.º e 2.º anos em 2016, com 85% a transitar de ano e uma redução de 28% no absentismo. No ano letivo passado, com 24 alunos, dos 2.º e 3.º anos, houve menos 40% de faltas mas só 65% passaram.

O parque botânico
Há três anos, a população começou a candidatar-se aos orçamentos participativos, um processo que permite aos cidadãos escolher ideias que merecem receber verbas públicas, cinco milhões de euros em 2018 (ver texto relacionado ao lado). Dez projetos da aldeia ganharam a maioria dos votos, sete a nível nacional e três municipais, o que significa 1 085 342 euros para investir na requalificação da aldeia.

Agora, o Parque Botânico de Vale Domingos ganha consistência. Tem 136 variedades de magnólias, o que faz dele o maior da Península Ibérica, e uma coleção de 76 aceres diferentes, incluindo o Acer palmatum, uma das espécies mais populares de bonsai. E mais 50 árvores exóticas - porque de certa forma a aldeia se considera "exótica" -, importadas de Itália, Espanha e Inglaterra e que ali se têm dado bem. O dinheiro também serviu para fazer arruamentos, comprar bancos e mesas, iluminar. Junto ao bairro social, vai nascer ainda um parque infantil e os jovens pedem um campo de jogos, que está na calha.

Ganharam os primeiros lugares no Orçamento Participativo Nacional (OP), em 2017 (ano em que foi criado) e 2018 (os dois primeiros, abdicaram do terceiro). O que ficou em primeiro lugar representa 250 mil euros, o que servirá para organizar a Feira das Lambarices por três dias. Têm os ovos-moles de Aveiro e o pastel de Águeda e querem atrair toda a demais confeitaria nacional. A ideia é que Vale Domingos seja a capital das magnólias e dos doces, uma aldeia turística, com alojamento local nas casas sociais do bairro da Amizade.

A empresa que construiu este bairro social cedeu-lhes o terreno em frente e o mato está a ser cortado por dois jovens ciganos: os primos Pascoal e Lázaro, de 20 anos - o primeiro já é pai, o segundo está a caminho. "Aqui, ninguém faz feiras e, como estávamos em casa, decidimos ajudar. Estivemos sete anos a fazer voluntariado até sermos contratados pela câmara [no início do ano]", conta Pascoal. Acrescenta Lázaro: "As gerações têm vindo a evoluir, a começar a trabalhar. Eu só tirei o 6.º ano, o meu irmão tem 15 anos e continua a estudar."

Os rostos da mudança
Pascoal e Lázaro pertencem a uma das duas famílias ciganas maioritárias na aldeia, os Ximens. O patriarca da comunidade é o Júlio Ximens, 60 anos, conhecido como "Zé da Burra" e que é hoje um exemplo positivo para todos, depois de ter andado no crime. Foi a primeira pessoa a quem Ricardo falou para o ajudar a envolver a etnia nos projetos de requalificação e integração da aldeia. O "Zé" convenceu a sua gente a voluntariar-se. Hoje há mistura entre ciganos, não ciganos e imigrantes. "Vendi droga, nem sabia o dinheiro que tinha, tinha tudo, Mercedes novos... Hoje vivo onde era a cavalariça e só tenho o RSI, mas sou mais feliz. Andava sempre a olhar para o lado, a polícia em cima de mim, sempre rusgas. Digo aos jovens para não repetirem os meus erros, que têm de trabalhar, e eles estão a perceber. Já temos uns 13 com emprego."

Ricardo sempre morou junto ao bairro de ciganos e lembra-se desses tempos. Quando os miúdos ciganos compravam gelados com notas de 500 escudos e deitavam fora o troco em moedas que os miúdos da aldeia apanhavam. O "Zé" era um traficante que os outros não se atreviam a afrontar. Cumpriu dez anos de prisão em Coimbra, saiu em 2012, mas não foram as grades que o levaram a arrepiar caminho. Mudou porque viu filhos, mulher e irmãos a consumirem droga. "Saí com uma mão à frente e outra atrás, vi os meus netos sem nada, nem casa. Encontrei o Ricardo que me desafiou e senti que era importante ajudar estes jovens.”

Ricardo Pereira, 36 anos, tem uma empresa de polimentos e ferragens, a Polomagnus, entregue à mulher, Rubina. Entregou-se de tal forma aos projetos da aldeia que praticamente não tem rendimentos, além de pagar muitas despesas que envolvem tais iniciativas. Todos os conhecem e lhe pedem melhorias, mais parece o presidente da junta. Ele jura que nunca enveredará pela política. "É incompatível!"

População e autarcas
Lázaro e Pascoal estão no Programa Ocupacional de Emprego, um contrato de inserção pelo salário mínimo, complementado pela autarquia. São um dos motivos pelos quais o presidente da Câmara, Jorge Almeida, não aceita as críticas de falta de apoio à população de Vale Domingos. Os seus habitantes dizem receber de autarcas de concelhos vizinhos maiores gestos de simpatia pelos prémios que ganham. "O município tem expressado, desde o primeiro momento em que o Parque Botânico de Vale Domingos ganhou as edições dos Orçamentos Participativos nacionais, a total disponibilidade para se assumir como parceiro, no sentido de exponenciar o mais possível o âmbito e o alcance desses projetos em benefício de Vale Domingos, da sua população e do concelho", responde. "O terreno é da câmara, comprámos os equipamentos, os materiais, pusemos duas pessoas na manutenção, mas claro que há muito que tem de ser feito pela população, pelos voluntários", justifica Jorge Almeida, sublinhando que era vice-presidente da câmara quando tudo começou e que é à junta que se deve o maior empenho na concretização do projeto.

O Parque Botânico está colado ao bairro da Amizade, onde muitos se voluntariam para ajudar na manutenção do espaço. Ricardo Duarte, 17 anos, estende a roupa. "Fui expulso de três escolas... Vou para França em maio", justifica.

Noutro bairro, David Montoya, 27 anos, pai de uma rapariga e um rapaz e com outro a caminho, diz fazer o que pode "para ajudar; e o resultado está à vista, o parque está muito bonito". Tirou a carta de condução há dois anos, foi uma vitória. "Andavam a conduzir sem carta e isso já não acontece. Estamos a tentar que se motivem uns aos outros, queremos mudar o paradigma da aldeia", explica Ricardo.

Irene Salgado, 64 anos, reformada, é outra voluntária. Mora em frente ao parque e confessa que antes tinha medo de ali passar. "Uma vez entrou-me uma cobra em casa. Agora, está tudo iluminado, bonito. Passo o dia sozinha e venho aqui até ao meu muro, sento-me a olhar." Ao lado, Bernardino Bajana, 66 anos, também reformado e natural da Guiné-Bissau, mora no bairro da Amizade. Cabe-lhe tratar das hortas sociais e diz que "vale a pena trabalhar quando se vê o resultado". Acácio Oliveira, 67 anos, é presidente da Creche Shalom e voluntário, um entusiasta da aldeia. A creche é um braço social da Igreja Evangélica Baptista de Águeda para as minorias étnicas e apoia 58 famílias.

Trabalham todos para promover a união numa população com grandes diferenças, numa aldeia com 350 pessoas que tem dois ranchos folclóricos - o Grupo de Danças e Cantares de Vale Domingos e o da Associação Cultural e Recreativa Vale Domingos -, fundados por dois irmãos: o pai e o tio de Ricardo. É esta lógica que o mais novo quer contrariar: tornou-se presidente da Associação para unir os dois grupos. Lá chegará.



Texto: Céu Neves

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