Há 65 anos nasceu em Esposende a primeira fábrica de laticínios certificada em Portugal. A Marinhas é uma empresa familiar, onde o queijo e a manteiga são ainda produzidos de forma 100% artesanal.
É na estrada nacional 13, que liga Porto e Valença, que encontramos um edifício de pedra, com um moinho de vento na fachada, rodeado por campo e com vista para o mar. Na fabrica de laticínios Marinhas localizada na freguesia de Marinhas no concelho de Esposende, produz-se uma das melhores manteigas do mundo, segundo a revista inglesa Wallpaper, e um queijo magro como há poucos no país.
“O nosso queijo continua a ser único porque é magro, não leva corantes, conservantes, anti bolores, anti fúngicos ou revestimento externo. É feito tal e qual como em 1954 e, por isso, tem um prazo de validade muito curto”, explica Berta Castilho, ao leme do negócio de família.
Os lacticínios Marinhas são um dos tesouros da região e se para uns esta é uma marca perfeitamente desconhecida, para outros faz parte de uma memória gastronómica com carimbo nacional. A empresa familiar, que vai na quarta geração, mantém orgulhosamente os métodos de fabrico há 65 anos, é recomendada por médicos e consta que até a mulher de Belmiro de Azevedo é fã dos seus produtos.
O leite, a principal matéria prima, vem da Póvoa de Varzim, mas é de Esposende que saem queijos e manteiga feitos em máquinas antigas pela mão de 24 trabalhadores, a maioria mulheres, residentes naquela zona. Manuel Fernandes é um dos poucos homens que vemos literalmente com as mãos na massa. “Estou aqui há 36 anos, não sei fazer mais nada”, confidencia ao Observador. Com uma bata branca vestida e uma touca na cabeça, recorda que já partiu um pulso e se queimou numa máquina, mas nada que o assuste ou demova na arte de fazer queijo.
Uns metros ao seu lado está Fernanda Vale, a funcionaria mais antiga da fábrica, que faz queijo e manteiga há 44 anos. “Já passei por todas as secções, este foi o meu primeiro emprego e hei de morrer aqui”, diz. Sorridente, retira com uma faca os restos de queijo dos tecidos da máquina de prensa e garante que gosta de ensinar quem ali chega pela primeira vez.
A Marinhas sobreviveu à revolução de abril, resistiu a modas e a tendências e manteve-se fiel à sua origem e à sua história. Berta Castilho, a responsável, diz não cair na tentação de a reinventar ou modernizar, afinal, “há memórias que não podem ser atraiçoadas”.
A fábrica que dava emprego à região e era o 112 em caso de acidente
Tudo começou em 1939, quando pequenos fabricantes de manteiga da região se instalaram ali, criando a Lacticínios de Esposende, Lda, com quotas cedidas pela Junta Nacional de Produtos Pecuários. Anos mais tarde, a sociedade acabou por falir tendo sido vendida em hasta pública. Amílcar e Reinaldo Castilho, pai e filho naturais do Porto, compraram-na em 1954, dando-lhe o nome da freguesia. “O meu avô era advogado e só entrou com capital, quem realmente levou a empresa para a frente foi o meu pai, que era engenheiro civil”, conta Berta Castilho em entrevista ao Observador.
Berta é a mais velha de três irmãos e está há 28 anos à frente dos destinos da Marinhas, a primeira fábrica de lacticínios certificada em Portugal. “No início só tínhamos licença para o fabrico de manteiga, mas não era viável, não tinha expressão. Os lacticínios em Portugal estavam ainda no começo, as pessoas comiam margarina em vez de manteiga, usavam óleo em vez de azeite”, recorda. Reinaldo Castilho, o seu pai, viajou pela Europa para ver o que se fazia lá fora e dois anos depois aventurou-se na produção de queijo, apostando num produto diferente.
“Os portugueses têm a tendência a imitar bastante bem o que se faz lá fora, naquela altura toda a gente fabricava o queijo bola vermelho, tipo flamengo, um original holandês. Ora o meu pai resolveu fazer um queijo que não era bola, nem vermelho e ainda por cima era magro. As pessoas estranharam imenso, foi difícil colocá-lo no mercado.”
Valeu a publicidade boca a boca e as indicações médicas, já que os especialistas da época o consideravam um queijo mais saudável e de fácil digestão, fazendo com que o produto se afirmasse assim, principalmente na zona norte. O sucesso obrigou a família Castilho e mudar-se para Esposende, numa década em que a cidade “era a estrada nacional e pouco mais”. A Marinhas era assim o principal emprego para a região, mas também um verdadeiro 112. “O meu pai chegava a emprestar gelo e carros da fábrica para transportar doentes quando havia um acidente”, recorda Berta, que cresceu entre aqueles corredores.
Quando em 1991 passou a tomar conta do negócio, certificou a empresa em segurança alimentar e preparou a gestão futura, mas sem nunca alterar o essencial. “A marca não se pode reinventar, tem que permanecer fiel, caso contrário não se aguenta de pé. Recebemos pessoas de todo o país que vêm buscar o que comiam em casa dos seus avós, essas memórias não podem ser atraiçoadas. O nosso público é fiel, não podemos mudar muito.”
O preço a pagar pela qualidade de um produto fabricado artesanalmente e em pequenas quantidades nem sempre é fácil de gerir. “Sentimos diariamente as consequências desta nossa opção. É difícil gerir a procura, há muita pressão para tentar modificar e levar o produto a um nível diferente, mas vamos manter-nos assim, pelo menos enquanto der e se conseguir viver disto”, realça Bárbara Castilho, filha de Berta e responsável pelo departamento de comunicação da marca.
Os produtos Marinhas vendem-se de norte a sul do país, mas dificilmente são enviados além-fronteiras. “Como não levam conservantes e o tempo de viagem dos transportes terrestres é elevado, quando chega ao destino tem metade do tempo útil. Outra das tentações é o vácuo, não o utilizamos porque quando se tira de lá o queijo sabe a plástico.” Quando em 2008 a revista inglesa Wallpaper considerou a manteiga Marinhas como uma das melhores do mundo, o produto esgotou até hoje. “Até aí tínhamos manteiga para dar e vender. Em 1991 existiam dez toneladas de manteiga no frigorífico armazenadas, mas de repente o produto esgotou.”
Embalados à mão, sem corantes nem conservantes
A fábrica recebe diariamente entre 15 a 20 mil litros de leite de vaca, que depois de ser devidamente analisado segue para uma máquina que retira parte da sua gordura. A nata retirada é colocada em bilhas de metal de 50 litros que vão para uma câmara frigorífica durante 16 horas para acidificar. Posteriormente a nata é batida durante duas horas, adiciona-se sal e transforma-se em manteiga, que depois é embalada à mão com papel vegetal.
“Não compramos nata, fazemos a manteiga a partir da nata que retiramos do leite para fazer o queijo magro. Se fizermos mais queijo temos mais manteiga, se fizermos menos queijo temos menos manteiga”, garante Berta Castilho, acrescentando que, apesar de a manteiga ter sido o primeiro produto a ser comercializado pela marca, atualmente é o queijo magro o rei das encomendas.
O leite é pasteurizado a 78 graus, arrefece a 30 para depois ser centrifugado e homogeneizado. Após ser coagulado, são adicionados fermentos, cloreto de cálcio e, por fim, o coalho. O preparado repousa durante 35 minutos até se tornar numa espécie de gel. Esta massa é laminada e escorrida para retirar o soro, que serve depois para alimentar gado, nomeadamente porcos. Quando atinge uma textura mais consistente, o queijo é colocado em formas de plástico de vários tamanhos para ser disposta numa máquina de prensa, entre 18 a 20 horas, e assim retirar o soro que resta. “Utilizamos um tecido em cada forma para depois ser mais fácil retirar o produto”, explica Sílvia Abreu, responsável pela produção.
Chega a hora de salgar o queijo e, para isso, há que mergulhá-lo numa solução de água fria com sal entre duas a seis horas, dependendo do tipo de queijo que se pretende: bola, barra, magro, gordo ou amanteigado. Quando já tem o sabor salgado que conhecemos, o produto é distribuído em cestos de plástico e colocado numa câmara de cura a 10 graus. O queijo magro permanece ali oito dias, já o gordo fica o dobro. “Cada um deles tem um lote escrito à mão com o dia, o mês e o tempo de cura”, revela Sílvia Abreu.
No caso do queijo sápido, mais salgado, a cura pode durar um mês e o bolor natural é lavado à mão com uma escova própria, já o queijo bola é pintado à mão, depois de seco, com uma esponja embebida em tinta vermelha alimentar. “Começamos a fazer queijo de cabra há um ano, mas ainda temos alguma dificuldade em encontrar leite de cabra nesta região”, justifica a responsável pela produção da fábrica, acrescentando que a novidade é mesmo o queijo cremoso fundido com menos 10% de gordura, cuja embalagem em forma de bisnaga faz lembrar uma pasta para os dentes.
É na zona de embalamento que são retirados os bolores naturais e se coloca o produto num tapete de secagem. Há caixas, rótulos e embalagens para todos os gostos, das mais pequenas que seguem para os restaurantes às maiores em forma de barra. Para fazer um quilo de queijo magro são necessários 13 litros de leite e o prazo de validade pode ir até aos três meses, já a manteiga com sal deve ser consumida em dois meses e a sem sal em apenas um mês.
A publicidade polémica no jornal e a preferência da mulher de Belmiro de Azevedo
O queijo Marinhas era presença assídua nas prateleiras dos hipermercados do grupo Sonae desde o ano em que foi fundado, em 1959. No entanto, o cenário mudou na década 1990. “Fomos chamados para uma reunião em Lisboa em que nos foi dito que o nosso produto era muito caro, não tinha procura e não lhes interessava mais”, recorda Berta Castilho, admitindo que com estas grandes empresas “não há forma de negociar”, pois “as vendas não são efetivamente expressivas, comparativamente à oferta que eles têm”.
Chegada a Esposende, a responsável decidiu comprar uma página de publicidade em dois jornais – “não tínhamos dinheiro para ir à televisão”- informando os clientes que a marca já não estava à venda na Sonae, mas que podiam procurar os seus produtos na morada indicada ou através dos respeitos contactos. “Não tínhamos outra maneira de comunicar com as pessoas, muitas já pensavam que a marca tinha acabado, o que não era de todo verdade.”
Quando a publicidade sai, a marca é acusada de enfrentar um grupo gigante, “mas lá diz o ditado: perdidos por cem, perdidos por mil”. Dois meses depois, Berta foi chamada a ir novamente a Lisboa para uma reunião, mas recusou. “Vieram eles à fábrica, inclusive a pessoa que nos tinha dito que o nosso queijo não interessava. Disseram-nos que tinha sido um mal entendido, que realmente havia muita gente a procurar o produto e a perguntar se podíamos voltar a fornecer.” O queijo Marinhas voltou, assim, às prateleiras dos hipermercados da Sonae, onde permanece até hoje.
A família Castilho soube, através de alguém que trabalhava no grupo, que Maria Carvalhais, a mulher de Belmiro de Azevedo, era paciente do médico Fernando Póvoas e que este lhe recomendava consumir o queijo Marinhas. “Contaram-nos que quando ela se apercebeu que o produto já não estava à venda deve ter ido falar com alguém superior. Pelos vistos deu resultado, pois foi tudo no mesmo timing”, revela Bárbara Castilho, responsável pela comunicação da marca.
Texto por Maria Martinho
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