O vírus da fome já está entre nós
Desemprego, pobreza, fome: o triângulo da crise na paisagem nacional que continua a enfrentar um Estado de Emergência.
A pobreza esconde-se – e Lu espreita, reformada e sozinha, atrás da cortina, derrotada, numa ilha urbana da avenida de Fernão de Magalhães. A pobreza envergonha e noutra ilha portuense há um casal que vive numa casa do tamanho de uma coelheira, sem água, sem luz, sem WC, num cenário de erosão económica e social com vista direta para o seu abismo. No Bairro Falcão um jovem casal, ela perdeu o emprego em turismo, ele está em lay-off, emudece: têm cinco filhas menores à frente para criar. “Nunca vimos nada assim”, diz Isabel Jonet, que há um mês montou num supetão a nova e brava Rede de Emergência Alimentar, “o que vemos agora é brutal”. A paisagem do desemprego é preta, diz o especialista em economia Pedro Santos Guerreiro, “vamos duplicar o número de desempregados, muitos estão ainda por desocultar”. Esta é a pandemia: desemprego, pobreza e fome são o verdadeiro vírus que não pára de infeccionar.
Um casal metido num anexo sem WC
Se imaginarmos que vivemos no reino dos animais então ali é uma coelheira e está ali um casal. Entra-se por um portão verde da última rua na fronteira do Porto com Rio Tinto, passa-se o grafíti que diz Vagabundo GT, sobe-se uma vereda de ervas cercada de prédios baixos (e um Smart abandonado no meio do caminho, como uma floreira paralelepipedal irreal) e assoma-se à clareira de cimento partido onde medra um jardinzinho em dissolução. É ali, desenrolada num beco que fica a “casa” deles, Maria Manuela e Abílio, 57 anos e 61, um anexo minúsculo, uma coelheira de 5X3 metros, talvez nem tanto.
A “casa” não tem água (eles carregam para a porta garrafões), não tem luz (vem duma puxada cedida por uma vizinha), está toda forrada a cartão, incluindo no teto por onde pinga, e lá dentro só cabe uma cama, um armarinho, uma mesa mínima com um fogão de disco e um frigorífico anão. A “casa” não tem WC e o WC é um balde castanho debaixo da cama (uma vez por semana, ou menos, tomam banho noutra vizinha). É uma “casa” sub-humana e o casal paga por ela 145 euros de renda. Sem recibo – enquanto continuam à espera, há muitos meses enrolados, por uma casa concreta da Domus Social, a empresa pública que gere o parque de habitações de renda controlada da Câmara do Porto.
São um caso descoroçoado de aflição: ela, Maria Manuela, tem 189,66 euros mensais de Rendimento Social de Inserção, mas metade vai-se nos medicamentos “da cabeça” e nos vasodilatadores coronários e nos hipotensores; ele, Abílio, recebe 283 euros da reforma para 80% de invalidez que anos seguidos de trabalho como pintor de tintas e vernizes, “sem qualquer máscara”, que lhe rebentaram os dois pulmões – ele dirá depois, “uma vez no hospital cuspi meio balde de sangue” e ato seguido tosse como uma caverna seca e saca de um saco plástico uma bomba de Pulmicort, o medicamento glucocorticosteroide usado para reduzir inflamações permanentes dos pulmões e que custa, cada bomba, 65 euros. E os dois olham agora emudecidos para a sua falta de perspetiva e não veem prisma de salvação: com a pandemia do coronavírus e da nova doença respiratória severa Covid-19 a obrigar ao confinamento geral, extinguiram-se subitamente os biscates de pintura dele e de limpeza dela e com isso viram esfarelar-se a sua tábua de salvação.
Juntaram-se há cinco anos depois de casamentos desfeitos, conheceram-se na AMI de Campanhã, onde comiam a 30 euros ao mês. Ele tem dois filhos que não vê, ela tem três – nunca conheceu sequer os seis netos que vivem a 60 quilómetros dali, em Amarante, de onde ela saiu há 17 anos porque o marido, “ele bebia”, lhe batia no grosso fervor, e foi por isso, por partir, que os filhos deixaram de lhe falar.
Naquele dia, Manuela foi à Legião da Boa Vontade do Porto buscar o cabaz para o mês, como faz há anos – a LBV é a instituição solidária brasileira fundada no dealbar do pós-II Guerra e que se instalou no Porto, Lisboa e Coimbra nos anos 1990, apoiando hoje mais de 500 famílias diretas para comer. Trouxe 25 kg de boa comida doada pelo Lidl e pelo El Corte Inglés, carne, fruta, legumes, básicos de arroz, massa, feijão, bolachas, iogurtes, mas também mimos pascais de chocolate e patê de pato fumado. Sem o cabaz, que eles dizem ser um dos melhores de sempre, Maria Manuela e Abílio estariam há muito submersos na fome.
E eles ficam lá atrás, parados a olhar para o abismo, um lugar geralmente escarpado em que há uma grande depressão abrupta, que termina em despenhadeiro, em precipício e onde há perigo de viver. Ouve-se um fiozinho do rádio de pilhas que estira uma concertina da Rádio Festival e atrás deles, por cima da cama, na parede de cartão da sua coelheira branca, vê-se um poster de João Félix ajoelhado no relvado como um santo sem altar.
“Nunca antes vimos nada assim”
A primeira frase que Isabel Jonet diz – e o seu horizonte é extenso: há 27 anos entrou como voluntária no Banco Alimentar Contra a Fome e hoje preside à instituição que angaria alimentos para 2 600 entidades e faz distribuição pelos desprovidos que não param de crescer – é que nunca vimos uma coisa assim. Revela que “em tempos normais, os Bancos Alimentares, presentes em 22 pontos do país, já apoiam 420 mil pessoas, ou seja, 4% da população portuguesa”, e que “cerca de 2,2 milhões de pessoas estão em risco de pobreza ou exclusão social”, 21,6% da população que ganha abaixo dos 500 euros mensais. “Mas, agora, com esta pandemia na saúde pública, o confinamento, a paragem geral de comércio e o estado de emergência nacional, nunca houve uma coisa assim”, avaliza Jonet. Faz agora um mês, perante o fecho de muitas instituições solidárias e em perda de voluntários, montou uma nova Rede de Emergência Alimentar; nos primeiros dois dias recebeu 580 novos pedidos de ajuda; quatro dias depois já eram 950; um mês após começar são 9 992 pedidos de amparo para comer – “não são 9 992 pessoas, são 9 992 famílias”.
Isabel Jonet retoma o fôlego. “São milhares de pessoas que apareceram de repente no fim da linha e a linha não pára de aumentar. É uma brutalidade que nunca vi, tanta gente de uma vez em paralisação total, com cortes severos de salários, pessoas com baixas reformas, pessoas não qualificadas, pessoas sem chão, sem horizonte, empregadas domésticas, manicures, feirantes, imensos trabalhadores informais, os novos trabalhadores do turismo, há pedidos desesperados neste setor que congelou abruptamente.” Por comparação, observa ela, a crise económica anterior, espoletada em 2008/09 e com réplicas que demoraram uma década a passar. “Nem essa crise foi tão brutal, porque se suavizou, de certa forma, ao estender-se no tempo. Esta agora não, esta caiu em cima de tanta gente de repente.… Já tínhamos 380 mil portugueses em pobreza estrutural, que é aquela que não se consegue vencer, mas agora temos esta nova pobreza, que é de um vazio assustador porque é repentina e total, que pode duplicar aquele número, que o pode triplicar. Sem nós, sem muitos como nós, muita gente morreria sem ter o que comer.”
É nesse mesmo ponto referencial que está Rubens Marques, o padre omnipresente da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, no Marquês, no Porto. Ele lidera uma das sete instituições da cidade que se mantêm em atividade nos dias do tsunami viral. “Mais do que duplicou”, diz o compadecido prelado, que todos os dias põe uma máscara branca P2 para ajudar os seus voluntários, que se dividem em duas equipas de 30 pessoas cada uma para servir comida em take away – é das 18 às 20 horas, tem dias em que a fila dos carecentes chega quase cá fora ao portão. “Até fevereiro, servíamos 160 refeições por dia, agora são 399; de 12 de março a 12 de abril contamos 9 987 refeições doadas. Os números já superam, é uma evidência, os da crise anterior.”
Atento observador gregário, o padre Rubens nota uma estreia e uma reprise no novo drama social: “Vejo um regresso da pobreza envergonhada, vejo a classe média em erosão. E vejo gente nova, há nitidamente mais jovens que nunca víamos aqui, jovens que trabalhavam no turismo, nas esplanadas, nas limpezas, na nova restauração, eles agora aparecem aqui pela primeira vez a pedir para comer. E isso é novo e é muito preocupante”.
Pobre Lu, esconde-se constrangida
A pandemia pôs a nu uma realidade camuflada, como a de Lu – Lu é um hipocorístico do seu nome real; ela pede para permanecer anónima, isto é, só aceita surgir oculta atrás da cortina de renda e creme na janela da sua pequenina sala de estar. Reformada, 67 anos, divorciada a viver sozinha, como 1 026 idosos identificados no Porto (em Portugal são 41 869 no total), ela habita num T0+1 duma ilha atrás dos muros da grande avenida portuense de Fernão de Magalhães. Ela diz: “Tenho vergonha, ninguém sabe, só sei eu o que passo aqui”. É só fazer as contas: recebe 189,66 euros de reforma, a renda da casa é 275 euros. Já está em défice e ainda não entraram a comida, a luz, a água, nem a medicação – que vai buscar de repente à mínima cozinha para mostrar: paroxetina, 20mg, valium 10, 10mg, victan debaixo da língua, um comprimido ou um e meio, depende das angústias e do tremor, além dos remédios da tensão, da asma e das vias respiratórias que se empastam na humidade.
“Se não fosse buscar de comer, há muito que já não estava aqui”, diz a mulher, que é também crónica utente dependente da caridade da LBV, a olhar fixamente o chão e o seu cão, porque ele soergue-se, é um caniche branco de pelo torcido em espiral, e olha suplicante – “é a minha única companhia, só falo com ele, mais ninguém, dorme comigo ali na caminha, o lado esquerdo é o dele”, torna a mulher a apontar.
Lu, que noutra vida trabalhou 22 anos no Lar do Comércio, volta às contas e só lhe dá subtração: “Como é que eu compunha a vidinha? Lavava escadas, fazia limpezas num prédio onde já morei – e aí ela abate-se, não sabe do chão: “Pagava nesse prédio 235 euros de renda, mas o senhorio queria subir para 400, como podia eu pagar?”. E teve que sair. Pouca coisa trouxe, além de memória, mas há um retrato que foi o primeiro a agarrar: “É esta foto do meu filho – tenho também uma filha, está em Inglaterra, mas não me liga nenhum” -, ele tinha 23 anos, morreu-me em 2014 no Luxemburgo, foi um acidente de carro, chovia, capotou, e ficou lá, não o vi mais, não tinha dinheiro para o trazer”, diz a pobre Lu, embotada, metida na sua nova ilha cercada de pobreza e solidão.
“Em Portugal, é considerado abaixo do limiar do risco de pobreza quem tem rendimentos inferiores a 501 euros por mês, são os dados da Pordata, de 2018”, vai dizer o especialista em economia Pedro Santos Guerreiro. “Na taxa de risco de pobreza, isto é, após as transferências sociais, tínhamos recuperado de 19,5% em 2014 para 17,3% em 2018. Mas o número vai agora voltar a subir. Se não existissem prestações sociais (subsídio de desemprego, pensões, rendimento social de inserção, complemento solidário para idosos), a taxa seria de quase 37%, uma calamidade social”.
Cofundador do “Jornal de Negócios”, cronista do “Expresso” e comentador omnisciente na TVI, Pedro Santos Guerreiro está rodeado de uma parede de números e, como sabe ver para lá dos números, só vê nuvens a carregar. “O desemprego disparou depressa, mas os números não são ainda, repito, ainda, assustadores. O susto está adiado no lay-off [regime que permite às empresas reduzir o horário de trabalho ou suspender os contratos por um período limitado, convocando contribuição estatal parcial] e o lay-off é uma bomba-relógio cuja carga explosiva não é ainda possível prever”, avisa Santos Guerreiro, que continua a adensar. “Mas é provável que mais do que dupliquemos o número de desempregados entre o início e o final deste ano, passando dos 340 mil para mais de 700 mil. E este não é um cenário muito pessimista. Portugal chegou a ter 850 mil desempregados no pico da crise financeira, em 2013, o objetivo do Governo é fugir de um número astronómico como esse. Mas basta olhar para o turismo, que representa quase 10% do emprego declarado em Portugal, para recear um cenário pior.”
O casal dos sete, com cinco filhas pequeninas
É nesse temor, que nas noites insones do pai é mesmo medo, é pavor, que está a família Antunes, de Telmo e Paula Cristina, ambos de 32 anos, bairro Falcão, Porto, atrás do Dragão, com cinco-filhas – cinco para criar – umas joias a encher a mão: Lara, 12 anos, Leonor, 10, Lia, 8, Letícia, 3, o nome veio da espanhola rainha consorte, e Luena, 21 meses, uma chupeta de forma labial que ela está sempre a atirar, muito rosada, pelo ar.
O jovem casal trabalhava em turismo num conglomerado de 45 apartamentos que estavam sempre a lotar – “era um corre-corre, só estrangeiros, franceses, americanos, brasileiros, chineses, às vezes gostavam tanto que queriam comprar os apartamentos, era logo, do dia para a noite, era assim”, relata o Telmo, mas parece relatar costumes de outra vida que ninguém sabe se vai voltar. Ele foi posto em lay-off de 70% a 1 de abril, juntamente com os outros 20 funcionários. “Recebo agora o salário mínimo, 635 euros, menos o subsídio de alimentação, dará 570 euros líquidos.” E Paula Cristina, a sua mulher, não viu o contrato a prazo renovado, foi já em agosto, e continua desempregada. Perdeu também no mês passado o curso pago de cabeleireira, no IFP do Cerco, que na pandemia fechou, e lhe dava para saldar o infantário e ainda dava subsidio de alimentação.
Eles entreolham-se, marido e mulher, e nos seus olhos bailam sempre as contas e a subtração. “Vamos ter que tirar as meninas do infantário, eles querem que continuemos a pagar, são 50 euros da inscrição, mais 58 pelas duas mais pequenas, o dinheiro não estica, ou a gente paga ou a gente come”, diz Paula Cristina, a mirar as cinco meninas, duas com grandes laçarotes coloridos no cabelo, que também ali estão, a roer peras e maçãs – diz a mãe delas: “Está a ver? Cinco crianças a lanchar é um quilo de fruta, ao pequeno-almoço é pacote e meio de leite, e agora com toda a gente em casa come-se ainda muito mais”, diz ela a sorrir, a dar a mão ao marido, a soltar ais.
Estão todos os sete na sala virada a norte, sala solar, do T4 camarário no Bairro Falcão e pagam 65 euros de renda por mês, que no próximo mês vai descer para 26 euros, fruto do perdão geral para dois meses da Domus Social. E o futuro deles treme mas ainda não vai desvanecer: aquela sala está cheia de amor e eles souberam olhar para fora, onde há bondade a amparar: têm chegado ajudas em cabazes da Junta, da Proteção Civil, da Rede de Emergência do Banco Alimentar, do site solidário precisodeajuda.com, do irmão da Paula, dos pais do Telmo e ainda há paparicos pascais dos bons vizinhos, como um bolo de chocolate ainda quentinho que acaba de bater à porta a esperançar.
No meio disto eles oscilam, há máscaras cirúrgicas lá em casa, há álcool desinfetante para quem entrar, a TV não os deixa esquecer o que estamos todos a viver, mas é do vírus que nem se querem lembrar. Paula diz: “Não é o vírus invisível que me assusta, é a vida real que estou a ver, é o futuro que não sabemos como vai ser”. Os sete já fizeram o teste de despistagem da nova doença da pandemia e ninguém tem Covid-19. Foram todos por causa da Paula, ela tinha dores agudas nas costas, enfraquecia-se-lhe a respiração, parecia que estava febril, e foram todos à tenda do Queimódromo, na rotunda da anémona na Foz, num dia que fazia sol. Quando as mais pequeninas viram lá ao fundo a praia, quase tiveram que as amarrar, a Letícia e a Luena queriam, só queriam, ir ao mar. Não podemos, não podemos, disse o pai e teve muitas vezes que repetir – e as duas pequeninas fizeram o trajeto de volta a casa, sem compreender, muito desoladas e a chorar.
Por José Miguel Gaspar
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